28.6.21

O apóstolo da normalidade encontra-se com os seus paradoxos

Jack White, “Sixteen Saltines”, in https://www.youtube.com/watch?v=DsixWMdScUI

Da janela do escritório, as nuvens acasalam-se com o crepúsculo, antecipando a noite. Dizia: “lembro-me de ter estado num país nórdico no inverno. À hora do almoço começava a anoitecer. Fiquei cansado de tanta noite. Se pudesse, vivia ao contrário do inverno, só para ter mais luz diurna.”

Todavia, lamentava a canícula. Era só o mercúrio do termómetro subir um pouco além dos vinte graus centígrados e já estava um calor que não suportava. Dizia: “se pudesse, vivia dentro de um ar condicionado, ou de um iglô, se o iglô não derretesse. Ou então, pediria a uma divindade para boicotar o termómetro, se o gelo não compensasse.”

Mas era alérgico ao gelo. As outras pessoas deitavam gelo nas bebidas – porque o gelo funciona como ingrediente de algumas bebidas. Ele não podia. O gelo, ou as bebidas refrigeradas, intumesciam a laringe e ele ficava no limiar da apoplexia. Também não podia deitar gelo em entorses ou em músculos danificados que pediam gelo para a reparação.

Ninguém lhe podia falar em visitar hospitais. Estava traumatizado por visitas anteriores, quando mazelas de diverso grau e importância ditaram visitas a hospitais e, alguns casos, internamentos. Tinha pesadelos com enfermeiras em uniforme. Pesadelos com médicos pré-sexagenários, os decanos das equipas, com a sua pose arrogantemente aristocrática e o desdém com que se dirigiam aos pacientes. 

Paradoxalmente, considerava a paciência uma das suas melhores virtudes. Muitos feitos tinham sido possíveis porque soubera perseverar. Não era pessoa de desistir à primeira contrariedade. Sabia atalhar um não como resposta, limando as arestas que fossem precisas até o transfigurar no sim pretendido. Diziam que nasceu para ser diplomata.

As relações entre os países não eram da sua lavra, porém. Não tolerava a hipocrisia que campeava entre os diplomatas. Tinha medo de diplomatas, que confundia com agentes secretos a soldo de inconfessáveis interesses dos países que os recrutavam. Desconfiava. E não era só de diplomatas. Era das pessoas, em geral. Dizia: um desconfiado não pode ser diplomata.

Não se importava que os outros replicassem na mesma moeda e desconfiassem dele. “Como os percebo! É o ónus da reciprocidade. Se eu não confio, não posso pretender que seja de confiar aos olhos dos outros.” Era apenas um espelho da espécie retorcida em que nos tornámos. E ele, como representante anónimo da espécie, não se escondia da mediania. Não sabia de outra solução.

Não lhe pedissem para sufragar as suas fragilidades. Essas só lhe diziam respeito. Já chegava ter a noção que não era pessoa que recomendava aos outros para ser parceiro de vida.

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