2.6.21

6am (short stories #324)

Cocteau Twins, “Carolyn’s Fingers” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=coT7o4IN-CE

          Um carro dos serviços camarários lava a rua. Aproveita o silêncio para tirar das ruas os despojos de uma noite tardia. As pessoas mal sabem que há quem madrugue para que as ruas finjam que estão alindadas para a sua visita. Nem dão conta que as ruas foram lavadas, a não ser que sejam madrugadoras e notem o chão molhado sem que houvesse previsão de chuva. Dariam conta que as ruas eram montras de lixo? Provavelmente, sim. Se há diferença que sinaliza um par de degraus subidos na escala da civilização é que as pessoas se apoquentam com o cisqueiro que contamina o olhar e invade o faro. Eis um raciocínio circular: as pessoas importam-se com os resíduos que afeiam as ruas e os serviços camarários começaram a ser zelosos na limpeza das ruas. Dizem que é para isto que serve a democracia, os representantes a cuidarem dos cuidados dos representados. Ou pode ser o contrário: os serviços camarários três passos à frente dos cidadãos, educando-os na cidadania ambiental. Não haverá concordância quanto ao ponto de ignição. Só se sabe que às seis horas da manhã, está o sol quase a dar de si ao céu que o convocou, os camiões rociam as ruas com uma água condimentada com detergente e lixeiros avulsos percorrem-nas metodicamente à procura dos vestígios que os últimos hunos deixaram à sua passagem. Quase ninguém conhece esta safra. As pessoas ainda dormem, ou estão para sair de casa. Não reconhecem este trabalho invisível que é um bem intangível para que não sintam que vivem num chiqueiro. Em tempos, um cidadão regressado de um país do terceiro mundo (segundo as suas palavras) confessou que só agora, que tinha regressado, é que dava valor à salubridade urbana. Disse-o, enquanto mostrava fotografias das lixeiras a céu aberto que eram as ruas.

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