10.6.21

Remix (short stories #326)


 The Durutti Column, “Bordeaux Sequence”, in https://www.youtube.com/watch?v=Ni5iUbV565Q

          Atira-se um formulário de reinvenção pela goela abaixo. Como se fosse preciso arranjar o detrimento do passado. A visível insalubridade não sai do alpendre onde estagia a alma. É preciso atuar. Sem um plano. Atuar com a confiança da espontaneidade; apenas conta a vontade momentânea. Não se fazem juras às fatias ulteriores. Nem às que atestem a validade do ato volitivo, nem para a combustão do arrependimento quando o saldo não é a preceito. É como ir ao passado sem o renunciar, dando-lhe uma nova moldura. A metáfora da cirurgia plástica às costuras da vida. Como se tudo o que contasse fosse tirar a esquadria do tempo de um palco onde ele volta a ser um zero à espera de aproveitamento – pois o zero é a casa da partida onde tudo passa a ser possível, outra vez. Ser um remix do que já se foi dita um ser diferente na projeção do vindouro. E, todavia, não se deixa de ser a casa de partiu de onde se saiu. Ensaia-se apenas uma transfiguração imposta pelo desprezo do tempo visível. Ensaia-se o eclipse de si. Não passa de uma farsa. Ninguém agarra com um simples gesto das mãos o vento remoçado que saiu de um sono incógnito. Uma máscara disfarça o rosto inalienável. Com um meticuloso manual de utilizadores, na farsa que nos torna anónimos, à mercê de uma alcateia faminta. A sede de um remix esconde a despertença de si mesmo. Como se fosse possível enfiar os pés numas botas que pertencem a outro número e continuar a andar. A digestão desagua na alucinação de si mesmo: quando se olhar no espelho, o remix não reconhecerá o rosto devolvido. Perde-se tudo. O eu que o foi no passado. E eu que deixa de o ser pela transfiguração que o abastarda.

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