8.6.21

Eu sei que tu sabes que eu não sei (Ou: sobre as obras de arte que só existem na cabeça do autor)

 

In Público, 07.06.21

Acreditem em mim: na minha cabeça fermenta uma obra-prima que deixará a “Ilíada” de Homero, ou “Crime e Castigo” de Dostoiévski, ou “À Espera de Godot” de Beckett a léguas de distância, reinventando os cânones da literatura (ou, pelo menos, parte deles). Acreditem. Já tenho o enredo, os capítulos estruturados, muitas frases na moldura da memória, para não se perderem com o emaciar do tempo. Vamos a leilão: quem oferece o mais elevado lance pelos direitos de publicação deste livro com quatrocentas e vinte e cinco páginas cheias de vazio?

Não acreditem, que é mentira. O que não é mentira é uma obra de arte que apenas existe na cabeça do autor e que foi vendida por uma soma astronómica. O autor jura que a obra tem existência dentro dos seus quadros mentais, mas não se transubstancia em matéria visível. É apenas um quadrado afixado ao chão com fita adesiva, para delimitar o espaço que corresponde à obra que só existe por dentro da imaginação de Salvatore Garau. 

Não gostaria que a minha – como dizê-lo, sem ferir suscetibilidades? – perplexidade fosse tida à conta de um conservadorismo sem remédio. Não queria que me deitassem ao lago onde os atávicos são devorados por jacarés progressistas. Não é essa a conta em que me tenho. Em minha defesa (caso seja necessário fazê-lo), invoco a abertura de espírito para as diferentes artes e para modos pouco convencionais de as manifestar. Sou um assíduo consumidor de cultura. E se ela for o produto de um desassombro, de um salto criativo que faz avançar a espécie, melhor ainda.

Estou ao corrente da importância do elemento conceptual para a delimitação de uma obra de arte – e para o seu reconhecimento enquanto tal. Porventura, o desassombro do artista, ao comunicar que nasceu uma obra de arte dentro da sua cabeça e que só por dentro da sua cabeça é que pode ser visitada, é o elemento conceptual que serve de caução para ser reconhecida como obra de arte. Quem se lembraria de proclamar que dentro de um quadrado preenchido pelo vazio está a obra de arte que só o seu autor consegue ver? Eis a originalidade, o travejamento da obra de arte. Enquanto a ciência não avançar ao ponto de nos permitir participar nas sensações que percorrem o interior dos outros, ficamos à mercê destes caprichos.

(Só a ideia deste avanço da tecnologia, o que ele poderia permitir, é dantesco.)

O que nos atira para outro aspeto que passa a ser o fiel da balança: a confiança no artista que proclama qualquer coisa a propósito da sua obra de arte. Ou da arte enquanto manifestação fiduciária, exigindo este elemento do destinatário para subir ao olimpo da arte. Quem se lembrar da manifestação mais original de arte está quase a ganhar o troféu. Se conseguir convencer a audiência do argumento mais improvável, o triunfo fica assegurado.

(De repente, recordo-me de duas manifestações deveras originais que deram brado – e muito dinheiro – aos seus autores: um imenso cubo de esperma congelado; e um artista que destruía a sua obra, deixando que os vestígios fossem a nova obra de arte nascida da destruição.)

Eu gostava de estar presente na sala do mecenas que, orgulhosamente, gastou quinze mil euros para adquirir esta “escultura imaterial”. Gostava de o ver a mostrar aos amigos, tão decerto embevecidos quanto ele, a ousadia da obra exposta. Ou então, de imaginar estes eruditos, e a sua proclividade para caprichos que a abastança propicia, a imaginarem o que é imaginado pela cabeça do autor. Tanta erudição junta não se prova; também é uma questão fiduciária. 

(Já agora, anuncio que o espaço em branco sobre o qual este texto repousa é a minha conceção de uma obra imaterial. As silhuetas e as formas e as cores e o modo como o espaço é preenchido são um exclusivo da minha lavra. Está aberto o leilão para a aquisição desta obra de arte.)









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