7.9.22

“O talento é o petróleo do futuro”

Fontaines D.C., “Nabokov” (live on Seth Meyers), in https://www.youtube.com/watch?v=rUWeFe3MjIo

(Tirado das catacumbas do mau fígado, em jeito de aviso prévio)

Não deve haver pior combinação do que o casamento entre gestão e psicologia. A retórica resultante, retorcida pelos pregões que ficam bem na hodiernidade desempoeirada, rivaliza com a língua de trapos que não é desconhecida à astrologia, ou a outras mistificações esotéricas.

Os gurus deste idioma são gente avantajada pela visão – como se fossem detentores de um periscópio que os habilita a ler o tempo antes de ele acontecer. Têm uma capacidade hermenêutica dos factos e dos fenómenos acima de qualquer mortal. A leveza semântica é crepuscular: as fórmulas usadas encantam os seguidores destes modernos pastores das almas, eles constantemente misturando o idioma nativo com o inglês (e fabricando anglicismos a eito, como se fossem a demonstração da sua imensa criatividade), sempre guiados pelo utilitarismo da produção e do consumo e despromovendo o que não obedece a esta materialidade, sempre movidos pelo lugar centrípeto da empresa e das estratégias comunicacionais que servem para posicionar a empresa no “mercado”, mas apenas lídimos representantes do capitalismo suicidário.

Ele há um reitor de uma universidade que foi rebatizada em inglês que, excitado com a perspicuidade da ciência de que é arauto, tem aparições públicas que são do domínio do metafísico. Tudo é trespassado por uma visão despejada dos acontecimentos, o futuro só pode ser colonizado por um otimismo militantemente ativo, o mundo é um lugar onde só há oportunidades, nada de embaraços nem de imperfeições que o desqualificam enquanto lugar mal frequentado, assim saibam, os que seguem a religião da gestão mancomunada com a psicologia positiva, tirar partido das oportunidades que devem saber detetar. 

É tudo um “state of mind”: os futuros empreendedores – pois o segredo está no segredo em guardar o segredo do empreendedorismo – têm o “skill” de ler as oportunidades que o mundo, tão prolixo, oferece em catadupa. Mesmo que sejam apenas “colaboradores” (não há cá trabalhadores, que isso sugere a vulgata da luta de classes do atávico marxismo, uma ideologia do desprogresso), devem fazer parte da empresa como se todos fossem da mesma família. O que conta é o “market share”, o “prize money” no final do ano (prova da produtividade, ou seja, do sucesso para a empreitada empreendedora), todos remando para que as “commodities” vençam no pleito do mercado. Que os “accomplishments” fiquem devidamente lavrados no Excel para memória futura (e para revelação dos CV, não vá o diabo ser tendeiro).

O tal reitor, inebriado com o sucesso instalado da sua igreja científica, atuando como se dela fosse supremo sacerdote, cunhou um novo lema que, de acordo com a sua conspicuidade, deve nortear os que queiram o sucesso (pois o sucesso é a aura máxima a que os “market agents” podem aspirar): “o talento é o novo petróleo”, exclamou, na apoteose de um momento genesíaco, em pose metaforicamente onanista. 

E eu fiquei a pensar na desconformidade entre a santa igreja da gestão & da psicologia e a moda ambientalista, pois se o petróleo é dos maiores responsáveis pela degradação do meio ambiente, possível promessa de distopia, o que se dirá do talento como transfiguração do petróleo? A deificação do talento será a autofagia da espécie. 

(Ou, se calhar, estes pregões são apenas vacuidades ditas por gente frívola para contentamento de outros frívolos que são seus acríticos seguidores. 

Às vezes, apetece-me ser de esquerda.)

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