Congeminava o efémero, porque o espírito de contradição se rebelava contra a apostilha do tempo em retrato panorâmico. “A vida é uma sucessão de instantes”, podia ser o lugar-comum desembaraçado do lugar involuntário onde eles são desprezados. Alguém contrapunha: “se formos longe, não podemos confiar no efémero”.
Pela noite, as luzes da cidade desfilam pelo olhar apático, emprestando-lhe uma aparente tonalidade lisérgica. O pensamento absorto, refugiado num exílio intencional, foi atirado para paisagens ermas, lunares. Era como se percorressem um chão baldio coberto por arbustos indiferentes. Na cumeada estaria nevoeiro e o olhar não conseguia apreciar a paisagem que, de outro modo, seria dada a contemplar desde o miradouro. Não importava. A bonomia não se afere pelos disfarces que escondem um lugar. “Oxalá pudessem as minhas mãos levantar a cortina de nuvens e destapar a paisagem”, disse, meio perdido nas ruas labirínticas da cidade tomada pela noite.
Alguém sugeriu uma paragem para aldrabar a fome, agora que a noite ia adiantada. No posto de reabastecimento, os rostos cansados saciam os estômagos vazios, alimentando o silêncio. A noite estava sossegada. Se em vez de táxis ocasionais houvesse o bulício dos turistas que vieram colonizar os dias da cidade, esse movimento seria transferido para a noite. Ao que parece, os turistas não querem saber da cidade coberta de noite. Salva-se um módico da cidade original. Mais fica para os que da cidade fizeram seu um lugar. Eles é que são os autênticos tutores da cidade. Os turistas são a evocação do efémero. Chegam e partem, deixando a cidade para a colonização de outros, efémeros, argonautas da curiosidade pela geografia alheia.
“Parece que habitamos em duas cidades, uma o avesso da outra”. Os outros, ainda atarefados pelo apetite voraz, anuíram com a cabeça, mantendo o silêncio irremediável. No fim da encomenda, alguém adiantou a possibilidade de boicotar o turismo: “a cidade é nossa, os turistas são visitantes que partem depois e deixam quase nada de si. Não digo que os turistas sejam culpados. A culpa é dos que esculpiram um certo turismo, convencidos que era do agrado dos forasteiros. Moldaram a vontade do turista. Eles é que deviam ser punidos pelo delito de adulteração da cidade.”
Os feitores do turismo eram aprendizes de feiticeiro, useiros no fingimento de uma cidade, entaipada por uma maquilhagem que a transfigurou. Alguém devia explicar aos forasteiros que a cidade legítima não é a que os intendentes do turismo lhes apresentam. Para que eles próprios, forasteiros, não sejam sitiados pela aprendizagem de feiticeiro dos aprendizes de feiticeiro que os enfeitiçam com falsos predicados e logros repetidos.
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