6.9.22

Manual da aterragem forçada

Ólafur Arnalds, “Back to the Sky” (live in Paris), in https://www.youtube.com/watch?v=9gGp9A-9XE8

Nuvens como bigornas metem-se à frente e tu sabes que não as podes trespassar. Para não seres matéria inerte (como os arquivos mortos), sopesas as possibilidades. Sabes que está sempre em aberto a aterragem forçada, pois há contingências que fogem à voragem da tua vontade. 

Tens de procurar o cais mais a preceito. Pode não ser o mais próximo. Se esse estiver sob os auspícios da tempestade iracunda, a aterragem forçada pode estar condenada ao sinistro. Ninguém colhe os ventos de um sinistro, a menos que não esteja em bom juízo. Pese embora as dúvidas que açambarcam os sonhos que campeiam durante a noite, estás convencido que a lucidez ainda não se desapoderou de ti. 

Excluído o cais mais próximo, consultas a memória para encontrar outro cais que sirva de alternativa. Temes que haja um módico de medo a poluir a lucidez exigível perante esta contingência. Metes gelo no pensamento, para que ele não seja contaminado pelas nuvens hostis que crescem a uma velocidade vertiginosa. A frieza de espírito saldou-se a contento. Preparas o voo para um ponto e vírgula; impõe-se um desvio de rota por causa das nuvens que desembaraçam os piores fantasmas e a escolha do cais que servirá para a aterragem forçada. 

Só que não tens a certeza se tens de proceder a uma aterragem forçada. Consultas os instrumentos que instruem a informação do tempo. Queres saber se as nuvens bigórnicas por diante são uma intermitência ou se pressagiam uma tempestade cavada. Tens de agir depressa. Já começas a sentir os efeitos da turbulência: as nuvens densamente povoadas avançam na tua direção. Não há tempo para uma indagação meticulosa. Tens de desviar a rota e procurar um caminho que leve até ao cais que servirá para a aterragem forçada.

Lembras-te, ainda a tempo, de estimar se o combustível guardado no depósito chega para alcançar o cais de emergência. Precisas de duas empreitadas simultâneas: ter mão no leme, para contrariar as primeiras rajadas que te atiram de um lado para o outro; e fazer os cálculos necessários para saber se o combustível restante chega até ao cais da aterragem forçada.

Sentes a camisa inundada pelo suor. A páginas tantas ficas sem saber se chegarás a tempo do cais de emergência. Tens de recorrer a um plano de contingência. Contar com os ventos a favor, nas ilhargas da tempestade, e aliviar o acelerador. Precisas de poupar combustível.

De repente, acordas. Era um pesadelo – e o pesadelo, a fonte de suor. Sentes-te contaminado pela nova contingência dos tempos novos, em que uma guerra não distante ameaça forçar os povos a um inverno negro, à míngua de energia. A aterragem forçada será dolorosa, com feridos a convocar inventário.

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