22.9.22

A máquina dos sonhos

Dead Can Dance, “Yulunga” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=7MeTXYmbUaU

O corpo arrasta-se contra os verbos sumptuosos. O palco assenta em alicerces de ouro e o chão é atapetado por pétalas. O idioma é o odor desengolido pelas pétalas ainda frescas. 

Arrumam-se os medos em dicionários onde só cabem palavras arcaicas. O desuso acompanha a claridade que é inaugurada pela manhã. 

Se os pesares não forem pesados, os olhos não decaem no crepúsculo que anuncia a noite. O suor fatiado veste-se na pele túrgida. Esperava-se que o sangue entrasse em ebulição. A anestesia conseguiu demovê-lo.

Ao longe, as montanhas orquestram o dia. Olhadas desde aqui, parecem varandas estendidas sobre o futuro. O tempo dirá se elas são apenas metáforas angariadas contra as farsas que tingem os dias correntes.

Às vezes, uma improvável categoria de sortilégio insinua-se nos interstícios que parecem compor as vidas. Pode não passar de uma ilusão, encenada para não nos abstermos da condição de párias.

Os engenheiros de tudo vogam na sombra, a sua pardacenta condição impede de aparecerem sob os holofotes da dignidade. Não os apoquenta, a discreta pele que vestem. Ao menos, podem andar nas ruas com a pele incógnita.

O passado dança na cidade erma. Reclama um lugar com paradeiro no mapa. O passado dança e dança, como se houvesse um concurso de luditas e as cores desenhadas nas costas de um bilhete de autocarro encorpassem o vocabulário sem freios.

A matrícula do automóvel sugere jogos de palavras. Dizes: podíamos ter outro entretenimento. Julgamos o mercado da semântica pela rugosidade das palavras. Às vezes, ficamos próximos de um poema.

A máquina dos sonhos não se desliga. Continuará ligada mesmo depois de o tempo se ter extinguido. Os sonhos conseguem a perenidade que é interdita às vidas.

Dizemos que não queremos prisões de qualquer espécie. As mais difíceis de evitar são as que fingem não o ser, seduzindo as almas para quimeras mal contadas. Se a máquina dos sonhos for interrompida, seremos as vítimas prediletas dos fautores de todas as prisões que nos cercam, com o seu ardiloso silêncio.

A máquina dos sonhos é a maior invenção de todas.

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