13.9.22

É a roda dentada, incansável

Bonobo, “ATK”, in https://www.youtube.com/watch?v=s39SDfB1iyQ

Se não fosse o deslumbramento, não haveria antídoto para as estradas esburacadas que aparecem no caminho. O deslumbramento anestesia a grande roda dentada, como se o tempo se enquistasse numa memória permanente e nada mais houvesse no exterior de nós. Nomeadamente, a imensa roda dentada onde tudo se terça. A roda dentada não dorme. Age, imorredoira. Ninguém a anestesia.

Até se pode ser feitor de uma ordem onírica. Mas os sonhos podem não ter confirmação quando se formular a ordem de aterragem. As dores crepusculares amontoam-se na ardósia que já não tem giz. Oxalá houvesse giz; ao menos, era usado para apagar a desordem, ou apenas para aplacar o corpo condoído pela não admissão a concurso do deslumbramento. Fica-se à mercê das contingências ditadas pelo sortilégio que só a roda dentada é capaz de segredar. O resto não conta. Somos evasivos por dentro de nós.

Alguns demoram-se na circunspeção para assegurarem uma conspiração a seu desfavor. Falam em espírito furtivos, vultos asininos, escombros que levitam ao levantar o véu do futuro. Ruínas jogadas nos despojos da decadência – todos estes ingredientes, a sementeira da roda dentada que se opõe à beleza matricial. À mercê dos humores voláteis da roda dentada, o rosto impassível denotando a fragilidade de quem admite ser um figurante nos acasos que se congeminam. 

Seriam precisos turnos para apreciar o labor consecutivo da grande roda dentada. Seriam precisos mil cientistas dedicados a estudar os movimentos meticulosos, compassados da roda dentada. Perante a impossibilidade da empreitada, as almas aceitam a inércia, como seres trazidos por uma maré avulsa que não podem domar. São indivíduos perecíveis, réus da dogmática incerteza.  

Os socalcos que se vindimam antes do anoitecer ficam arrumados mal a roda dentada faz descer o seu músculo centrípeto. Nem o mais encorpado de todos consegue dobrar o braço hostil da roda dentada. Os que se insurgem, convencidos da sua predestinação, são obrigados a curvar-se perante a roda dentada. Só então se convencem da sua imensa fragilidade ao pé da roda dentada. 

(Já houve quem chamasse deus à roda dentada, ou mantenha que deus consubstancia a roda dentada, mas isso não vem agora ao caso.)

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