As purpurinas exasperam a pele, deixam as provectas ansiedades do mundo a falar alto. De onde vieram, só sabemos que adejavam, sopradas pelo vento errático, sem paradeiro por determinar. Na mesa do lado, um rapaz está embebido na música que passa nos auscultadores. Por mau isolamento dos auscultadores, os demais sabem (se conhecerem) a música que o rapaz está a ouvir. Ele tem uma vantagem: não está com as purpurinas coladas à pele.
O refrão repete-se – como se o artista estivesse num mau dia de inspiração (eufemismo para a estrutural desinspiração, no caso) e não conseguisse passar das palavras atamancadas no refrão. O rapaz encena uns tímidos passos de dança. Não será dança completa porque está sentado a beber a cerveja pela garrafa, no olímpico ignorar do copo que a empregada deixou na mesa. A perna direita move-se energicamente, parece repetir o refrão à exaustão. Nós, que temos o desprazer de conhecer aquela música, perguntamos como é possível um artista ser artista à custa de um refrão primitivo. Logo a seguir, descemos à terra e consentimos na exposição da estética ao princípio geral da relatividade.
O refrão parece colar-se à pele que serve de adesivo ao pensamento. Saímos do café, já tínhamos esgotado a sua serventia. Avançamos pelas ruas e o refrão não se descola da pele que serve de adesivo ao pensamento, abaulando a estética de que (talvez arrogantemente) nos julgamos tutores. O refrão já era um desprazer, agora tornou-se persona non grata. Apetece, num insano ato de violência gratuita, matá-lo. Pelo menos na pele que serve de adesivo ao pensamento.
Da estética de que nos julgamos tutores – voltamos ao assunto, nem que seja para obnubilar o refrão soez: um de nós adianta a hipótese de ostentarmos arrogância nessa condição. Não há arrogância, o que logo exclui a hipótese de ostentação. Partindo do princípio de que cada um segue um padrão estético, essa é uma divisa que aparece ao peito. Não se foge dela. Sem prevaricação que seja insultuosa aos demais, que a eles também está reservada, por adesão ou apenas por passividade, uma certa estética.
O refrão é uma flecha assestada ao olhar. Um atentado à estética de que somos embaixadores (fica mais modesto, em vez de tutores, não vá um angustiado militante de qualquer coisa insistir na tese da arrogância intelectual). Não somos aquele refrão. E mais dizemos: não somos nenhum refrão, que tanto prezamos a liberdade de espírito e não fomos feitos para sermos coutada de movimento nenhum.
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