Aquele álbum que haverá de ser publicado. Aquele livro de poemas que continua escondido e não o será enquanto não apetecer. Aquela cidade que anda a ser ajuramentada. Aquele adormecer singular com um céu de estrelas como espelho. Aquele festival de música que parece um sonho. Aquelas paisagens inóspitas que não ficarão desiludidas com a nossa visita. Aquele adiamento impossível. Aquele desassombro de bondade que a teimosia, ou a austeridade interior – ou apenas a rotina com os seus embaraços –, impede. Aquela ideia órfã que será ensaiada. Aquele autor maldito. Aquela viagem a um lugar não remoto e todavia invisitado. Aquela empreitada que desafia os preconceitos enraizados. Aqueles preconceitos que estão em vias de não o ser. Aquela tatuagem interior a que a boca nega provimento. Aquele grito no meio da multidão, sem temor de ser olhado como louco. Aquele ensejo para virar tudo do avesso, só para ver as suas costuras e depois decidir o que continua do avesso e o que é devolvido à sua forma primitiva. Aquela indiferença sobre o mosto que apodrece à nossa volta. Aquele crepúsculo que parece atravessar o tempo inteiro, desfeito em estilhaços. Aquela trova que se diminui na sua humildade. Aquele desembaraço que esbarra no medo e como o medo perde a sua ossatura. Aquele feitio atabalhoado reduzido à amabilidade. Aquele empossar da lucidez, contra as distrações que povoam o horizonte com o desfuturo. Aquela voz que não se arrasta numa dilação. Aquele sonho enfim esconjurado. Aquele corpo que não se esconde. Aquele olhar desimpedido que não se amedronta com falésias. Aquele porvir que há de estar à distância de um braço. Aquele predispor que se enlaça com o passado, à procura de um lugar de pertença. Aquela paga de uma jura indelével (não usarás relógio). Aquele tempo a destempo, ou um tempo sem medida para o ser.
28.4.23
Juros vincendos (short stories #423)
27.4.23
O mar é deserto
O mar é como um deserto, a água em vez da areia ou da estepe, o mar inteiro em vez de ausências. O mar imenso agiganta a nossa pequenez. Estamos à sua mercê, porque é o mar que orquestra o clima, é o mar que é generoso na faina desembarcada pelos pesqueiros, é o mar que se convola no dorso das tempestades que o mostram, iracundo e sublevado – é o mar que está à frente no domínio do indomável.
Mas o mar talvez não seja deserto. Pois a voz que se entoa é feita de salitre que se sobrepõe em camadas, fazendo a pele de que sou feito. É por ele que as lágrimas são lidas. É da têmpera rija do mar que se compõem os ossos que se não estilhaçam no rumor do primeiro contratempo. O mar não é deserto por ser o túmulo de tantos marinheiros, por ser o santuário de tantas carcaças puídas de embarcações naufragadas. E por todas essas almas e amontoado de ferro retorcido que resiste à erosão do sal, muitas outras são porta-vozes sem saberem.
O mar que se aformoseia à passagem dos navios por sua vez dele enamorados é o panteão onde os olhos de tantos poetas se embeberam antes de se sacrificarem no dedilhar da poesia. O mar que se funde com precipícios vertiginosos e em areais planos, o mar que adormece só depois de a última pessoa adormecer, o mar que está de atalaia por nós. O mar que une os mares que se dizem separados – mas não há mares separados, por muito que as convenções assinaladas se penhorem pelos nomes dos diferentes mares. Do mar retemos a gramática em que assentam as vidas que o encontram como sedução.
No mar são depostas as cinzas derradeiras, se não for proibido por lei (ou apesar de o ser). E no mar as cinzas mortuárias não se dissolvem, engrandecem o mar, fica mais volumoso. As cinzas avivam-se nas ondas que se encrespam pela brisa tardia, como se o mar ficasse arrepiado ao sentir as cinzas mortuárias e soubesse, num impulsivo lampejo de imagens sucessivas, recitar aquela vida inteira. Num volteio magnífico, em perfeita coreografia, o mar que se oferece aos que dele tiram esboços mentais a partir do cais escreve em letras douradas o derradeiro epitáfio. Imortalizando uma vida deixada à sua tutela.
O mar, não é deserto.
26.4.23
Dente de tubarão
Para que servem as efemérides?, perguntou a filha ao pai e este, admirado com os avanços no vocabulário, respondeu com uma pergunta, intuindo a resposta da filha: onde aprendeste essa palavra, efeméride?, logo seguida da resposta canónica da filha: na escola, onde podia ter sido? Podiam continuar neste jogo de perguntas seguidas de resposta em forma de pergunta e assim sucessivamente, mas o pai pegou no fio à meada e voltou à pergunta de partida: servem para celebrar coisas que aconteceram e que são importantes para a História do país, servem para nos lembrarmos que somos uma comunidade.
A filha, naquele dia especialmente inquisitiva, perguntou quem define o que deve ser celebrado como efeméride, ao que o pai respondeu, sem grande convicção, somos todos nós, a comunidade. E a rapariga, não satisfeita com a indeterminação do conceito, não deixou o pai em sossego, atirando outra pergunta: e se houver pessoas que não querem festejar, ficam isoladas a um canto, os outros que pertencem à comunidade apontam-lhes o dedo? Não pertencem à comunidade? E o pai, atrapalhado com o método filosófico a desoras, procurou desconversar e perguntou (foi a sua vez de perguntar) a que horas chegava a amiga que a filha tinha convidado para o almoço.
A manobra de diversão não teve sorte. A rapariga voltou à mesma pergunta: e se houver pessoas que não querem festejar, ficam isoladas a um canto, os outros apontam-lhes o dedo? Antes que o pai pressentisse a resposta, ela acossou-o: desta vez não fujas à pergunta – parecendo uma intimação do algoz à sua vítima, o interrogado.
O pai deteve-se na dúvida, que se cobriu de silêncio. A rapariga percebeu que a pergunta não tinha uma resposta fácil. O pai podia encenar outra manobra de diversão, elogiando a rapariga por ter a sagacidade (ela teria de ir ao dicionário ver o que significa sagacidade?) de saber formular perguntas e que era isso, mais do que procurar respostas, que importava, mas não foi nessa direção. Hesitante, tartamudeou que a beleza está em termos direito a não concordar com o que não queremos concordar, sem que os outros, os que até estejam em maioria, nos possam acusar de sermos dissidentes. A rapariga, em acesso de rebeldia não esquartejada, lembrou-se daquelas ocasiões em que o pai a contrariava, mas percebeu que não era disso que o pai falava.
O pai quis juntar outra frase, para ser mais convincente: a escolha pela diferença não é perseguida, pois se fosse era como se os poderosos lançassem um dente de tubarão sobre os dissidentes. Deixaria de haver dissidentes. E seríamos todos parecidos de mais, o que contraria a noção de comunidade. Voltando à casa da partida, concluiu que as efemérides valem cada vez menos, ela que não preocupasse em festejá-las (a não ser porque nesses dias não vai à escola).
Em silêncio sobre si mesmo, percebeu que o cimento da sociedade está cada vez mais gasto e tende a estilhaçar-se. Mas esse mau legado, o espectro das nuvens sombrias que colonizam o futuro, e sendo o futuro o lugar a que pertence a filha, não o queria a assombrá-la. Às vezes, o silêncio é reparador e não é preciso agitar fantasmas que vão crescer no seu tempo errado.
25.4.23
Espartanos
Não damos aos heterónimos da alma bom conselho. Se eles se exilassem no labirinto que se esconde das luzes, podiam-se manter heterónimos. Talvez se exagere nas revoluções que assanham o sangue contra o coração. Se em vez de angústia colhermos as pétalas cindidas no crepúsculo, seremos vikings, o corpo irredutível sem medo do frio, e metemos as mãos nos remos mesmo sabendo que o mar está em preparos de engolir a nau.
Seremos espartanos. Peritos no domínio do rigor, sem transigir com a apneia que conspira para nos demover do apalavrado. Seria como um ato de minimalismo: o uso sóbrio das palavras, proibindo a jactância que decora o gongórico, proibindo os adjetivos – que as palavras, na sua pureza, são tão encorpadas que perdem a robustez se vierem amaciadas por adjetivos. As paredes de uma alvura extravagante são o convite para reinventarmos as demais cores. É a nos que compete escolher a cor que transfigura o branco. Escolher a forma e o dia do luar. Ou deixar a alvura coroar o minimalismo com que nos entregamos à vida, e esse é o feito que a agiganta, sem desperdício pelas bagatelas que são o seu entulho.
Desaprovamos os heterónimos. Não queremos saber da multiplicação de personagens que coabitam no mesmo pensamento, que se servem do mesmo corpo para satisfazer desejos diferentes, que colonizam diferentes vocabulários. Não queremos ser reféns de uma ilusão sísmica se a terra não se move. A singularidade da existência não está à altura de todo o tempo que nos é destinado. Não precisamos de perder mais tempo com a desmultiplicação de almas pelos heterónimos que são usura.
Se formos espartanos, há destroços por dentro que exigem inventariação. São corpos inertes que absorvem uma fatia do tempo e emagrecem o tamanho da vida. Se pensarmos em dádivas, somos esse chão válido em que lançamos as sementes meticulosamente escolhidas. Somos nós que damos vida às sementes. Dando corpo a um cifrão sem moeda que se lança como um dado que procura um número a preceito. Ou uma didascália por onde movemos a memória, para não nos perdermos numa nota de rodapé nem ser o nosso nome tomado de assalto pela toponímia.
Não temos medo de ser espartanos. Toda a água que trouxermos ao rosto é um espelho desembaciado com janela aberta para o corpo presente. Somos o promontório de onde colhemos, com vagar, as sílabas demoradas que não deixam ficar para trás nenhuma palavra, que ao túmulo só destinamos umas quantas, proscritas. Somos esse ato de bravura que é colher nos poros da pele todos os gramas que contam para engordar a vida. Sem ter medo de errar. O erro compõe o dicionário espartano.
24.4.23
E (nem sempre) vice-versa
Mote: Mário Centeno, com um misterioso sorriso que vale por mil palavras – ele que lançou a granada e depois fugiu antes que ela estalasse –, atirou-se, com alguma candura e muito sopesar de palavras à mistura, ao programa IVA zero do governo. O Centeno agora governador do Banco de Portugal e outrora ministro das finanças discorda do seu sucessor e do chefe que foi seu e é do seu sucessor. Um exercício de História contra factual traz no coldre a seguinte interrogação: e se Centeno ainda estivesse sob a alçada do mesmo primeiro-ministro, vestia o fraque do economista e ensinava ao chefe como o IVA zero é uma absurdidade económica (e, pelo caminho, social)?
Santas obras, santos ofícios: não é pelo focinho da estultícia que muitos se intimidam com os paradoxos de que são curadores exímios. Não se despromova o direito a virar os graus a cento e oitenta e empenhar a antiga opinião, passando a ser embaixador de uma outra, sua antónima. O direito a mudar, se não tem inscrição constitucional, devia ter. E há sempre a indagação sobre a indumentária que as personagens envergam, pois se ela é uma a personagem obedece a um roteiro e se for outra a personagem sofre uma metamorfose e exterioriza outra narrativa.
Mas, ó insidiosa insegurança de opinadores preclaros, ele há tantas personagens a quem os cânones da higiene ensinaram a mudar de camisa e de roupa interior, que os cânones se mudaram para a coutada do pensamento. E viram o pensamento do avesso, sem ser a Constituição a atestar o direito a mudar a opinião. As personagens, que não omitem uma certa gravitas, infundem pensamento, com o mesmo ar circunspeto, sobre a mesma coisa em sentidos contrários, sem que alguém possa desafiá-los a rebater a acusação de serem vira-casacas. Há casos que, por apurada sensibilidade do ofendido, chegam a ser dirimidos em tribunal – ou ficam-se os valentes ofendidos (ou os ofendidos valentes) pela ostentação da bravura de quem ameaça com a barra dos tribunais, mas o acamar das cinzas que o decurso do tempo transporta não deixa saber se foram adiante ou se assustaram com a exorbitância das custas judiciais.
E mesmo que se levante a hipótese que alguém virou uma ideia sua do avesso e o que hoje é dito contradiz o que disse anteontem, não podem as pessoas curtir as peles do arrependimento, renegando o anteontem e acolhendo com uma centelha de esperança o novo hoje a que se abraçaram? Nós, os que temos um radar sofisticado, sempre à espera de apanhar alguém em falso e distraídos perante as armadilhas que deixamos no nosso próprio caminho, é que somos implacavelmente incompreensivos. Ele há tanta nata deixada à superfície, e toda essa nata embacia as funduras que influenciam o pensamento cheio de densidade. Nós, os superficiais, ficamo-nos pela nata e não podemos entender a complexidade alojada na fundura das coisas. Nosso, o erro de julgamento. Nossa, a intencionalidade de tornar os vira-casacas nos novos Cristos, pois a celeridade em os crucificar assim o subentende.
Ou então, a tese da complexidade que vagueia sob a nata das coisas, ou é um ardiloso pretexto para desviar as atenções, ou é a confirmação de que ficamos a dever muito à transparência – se a transparência significa o que vem nos dicionários.
21.4.23
O fogo posto que fala por mim (short stories #422)
Desobedeço aos espectros. De mim, não se espere rendição. Há um fogo posto que não se extingue. Uma teimosia que não acusa a validade do tempo. Desobedeço aos mecenas que vacinam contra os sobressaltos interiores. Prefiro os sobressaltos interiores a sentir-me domado pelos diligentes embaixadores da obediência. Prefiro pisar uns gramas de precipício, mesmo sabendo-me sem arnês, do que aceitar a benevolência dos mastins que se disfarçam de míticas figuras paternais. Essa benevolência é uma farsa. Não posso calar o vulcão que se ateia a cada dia que passa. Se o deixar em silêncio, se lhe meter um garrote na jugular, passo a outro eu. Desconfio que não estarei para avivar a cal do dia consecutivo. Por isso, deixo abrasear o fogo interior que levita desde o labiríntico arguir das veias e do sangue que as dilata. Este fogo posto é um adiamento intencional, propositado o seu hedonismo. Não é um disfarce do tempo que avança. Posto o fogo de atalaia, a pele não se extingue, o olhar não recusa as latitudes, o pensamento viaja por todo o sistema solar, o corpo não enjeita os apeadeiros que aparecem ao acaso. Ninguém é o eu próprio se for servil à sua circunstância exterior. Deste fogo que me alimento, os dados lançados para o tabuleiro sem regras e as palavras avulsas que se transfiguram em estrofes sindicadas pelo vento tardio. Antes que seja apanhado por uma divindade malsã e, distraidamente, seja vítima dos objetores de consciência dos adiamentos. Somos frágeis, demasiadamente frágeis, para estarmos à mercê dos acasos que se jogam contra nós. Enquanto for o curador do fogo posto que fala por mim, não serei refém do tempo intransigente que joga sal nas feridas que vão sendo percutidas. No pedestal que não se avista, direi ao sol que tem tempo para desacontecer.
20.4.23
Viveiro
Que ninguém se amedronte com a escuridão nos túneis onde corre o metropolitano. São lugares à prova de gente, insalubres, inabitáveis. Nem os loucos apoderados, ou os misantropos incorrigíveis, intuem o exílio nesses subterrâneos. A centelha à superfície desaprova a intimação de que ninguém sabe a autoria. Porventura, não há conhecimento desta intimação, são as pessoas que se escondem da fuligem que as cobre quando convivem nas cidades – e a fuligem não é um dano que causamos na atmosfera.
Na praça centrípeta, ao menos o ar parece menos saturado. A praça é ampla, talvez ajude. As pessoas cruzam-se, outras estão sentadas nos bancos, à sombra das árvores, refugiadas do calor que assalta os corpos com um suor indesejado. Ouvem-se idiomas diferentes. Quase não se ouve falar no idioma nativo. Naquele viveiro de diferentes vozes, uma amostra do mundo. Um viveiro cosmopolita que impede a praça centrípeta como imagem de representação da cidade. Aquela praça, no somatório das várias culturas, é o exílio sem ser necessário devolver os descontentes aos subterrâneos. O ar da praça foi arejado pela constelação de diferentes idiomas.
Um estrangeiro pergunta algo a outro estrangeiro sentado no banco contíguo. Trocam uns mapas e uns papeis indecifráveis, um deles anota um rascunho, talvez o mais conhecedor da cidade, aconselhando restaurantes, museus, jardins, outras curiosidades que sobem à toponímia da cidade. Fazem inveja aos habitantes da urbe que por ali matam o tempo: se ao menos pudessem estar em lugares trocados, os habitantes da cidade seriam turistas noutro lugar e repetiam o papel que os forasteiros exercem na sua cidade. Estariam em perda: enquanto forasteiros não podiam estar no posto de observação que agora ocupam, não teriam o desembaraço de inventariar as várias culturas que se caldeiam na praça centrípeta; estariam noutra, desconhecida, praça centrípeta, o olhar inusualmente voltado para um quadrante superior a uma linha reta traçada na horizontal tendo o nariz como casa de partida, a apreciar o povoado em vez dos que o povoam.
Os diferentes lugares estão mais perto. Neste viveiro de tão variegadas culturas que é quotidiano, a cidade transfigura-se noutra identidade. Já não se pode atestar a certidão de casamento entre a cidade e o país que é seu chão. A idiossincrasia dos lugares está a ser contestada pela afeição aos cosmopolitas que a visitam e aos cosmopolitas em que muitos dos seus habitantes se tornaram. Os diferentes lugares estão tão perto que as fronteiras desapareceram do léxico, deixaram de ser os muros que nos separam dos outros. Os muros estão nos corpos dos outros. Eis a nova fronteira.
Agora, os outros tornámo-nos nós. Em vias de sermos um viveiro despojado de bandeiras e de hinos, apenas a consagração da matéria de que somos, humanidade, todos feitos. Sem outros muros a servir de veneno.
19.4.23
Deszero
Desfaçam-se os zeros que dissolvem o futuro. São precisas todas as absolvições que a carne pode amadurecer. Todos os nasceres do sol que os sonhos congeminam, a jeito de o dia ser terapêutico. Nas balanças, sopesem-se os sobressaltos espúrios, as angústias descontratadas, os processos de intenção que atravessam um ermo lugar, a tremenda mania de sermos maiores do que a nossa silhueta.
Tomamos o lugar de um fiorde, o vento frio que trespassa a pele e magoa a carne; e, todavia, o lugar antípoda oferece-se, demiúrgico, como o segredo que confia a fonte criadora. Tudo se recompõe, nas artes à prova de inventário, em sucessivas convulsões que animam o sangue arrefecido. Não são lugares devastados que desfilam no estirador onde se reinventam. Não são rios desesperançados que correm vagarosamente para a foz, malparados no estuário que amplia o pôr-do-sol e disfarça a sua putrefação.
Se a manhã não intimidasse, seríamos eloquentes como somos ao nascer. Não podemos desaproveitar a bondade do tempo. Não podemos ser passivos perante os legados que tutelamos. Por mais que a vida seja um esgrima contínuo e as feridas se acumulem numa demanda de cicatrizes, há o demais – o avivar da luz que se abate em pinceladas que assentam na pele, as estrofes que se aninham contra o mau uso do idioma, uma derradeira centelha que afinal é apenas mais uma, e de véspera, antes que outra venha e seja, também ela, a véspera de um acontecimento qualquer, e o dever de continuar a falar em vésperas sem escrutínio. Não somos demissionários do devir. Não somos autores, por capitulação, do destrate do tempo que se faz ávido nas mãos suadas. Somos rostos e braços e torso e pernas e pensamento e sexo e alma, inteira ou por frações, e por junto não devemos nada ao passado. Não interessa a contabilidade mesquinha com zeros a sucederem-se no horizonte. Não contamos as ninharias que tomam de assalto a atenção, a elas dedicamos a mais sincera desatenção – a melhor homenagem que lhes pode ser tributada. Antes que de nós sobrem as cinzas crepusculares, uma distante desmemória do esquecimento que passamos a ser. Pois que à morte, deixamos de ser.
Na aritmética da vida, deixamos de contar com os zeros. A contagem começa no um.
18.4.23
O presente que se pressente na voz do passado
“A última gravação de Krapp”, de Samuel Beckett, encenação de Nuno Carinhas, Teatro Carlos Alberto.
As dores vêm agarradas à barriga que aloja o passado. A nostalgia, dolorosa, resgata as frações que ficaram emolduradas pela voz do homem que foi testemunha dos estados de espírito trinta anos antes. A voz está igual. Mas o sangue de hoje fala um idioma visceral.
Trinta anos depois, a recusa do passado. A gramática da gravação não dança com o presente que se exerce como sua sindicância. O esquecimento podia ser o antídoto contra a voz resgatada do passado. Ou apenas a vontade de a deixar lacrada no tempo emérito. Em vez disso, a gravação, aqui e ali interrompida, como se a hesitação fosse juiz do sangue gangrenado que ia sendo oxigenado pelo arrependimento.
O objeto que repetia aquele instante trinta anos depois era um punhal que dilacerava os ossos. Nada do tempo presente se revia naquele fragmento de um tempo que já devia ter sido esquecido. O homem voltava a esse tempo, talvez para lhe ministrar a sepultura definitiva. De cada vez que retoma a gravação, não esconde que este que é agora o desagrada. Joga o passado contra o presente, e não é para legitimar o presente. A gravação aviva a memória: ela não se extingue porque as bobines estão metodicamente inventariadas (e o homem, cinicamente, dedilha as sílabas: “bo-bi-ne”). Toda a sua História, ou pelo menos aquela que ao acaso foi atirada para o caudal de uma biografia ajuramentada, está ao jeito da nostalgia dilacerante.
Por mais que o pesar acompanhe o som das palavras cimentadas há trinta anos, a existência das bobines atira cal viva a uma desconfiança: o homem não decretou o adeus a esse passado. Revisita a gravação para dizer mal do presente através do maldizer daquele passado em escuta. No estendal da vida, trinta anos encerram muita mudança. Ou apenas um disfarce dessa mudança, arrematada na gravação que parece renegar e que, todavia, se oferece como caução de um tempo presente que precisa de legitimidade.
O homem do presente atira-se ao passado, como se precisasse de o exorcizar. A nostalgia deixa o homem encolerizado. Ajuíza, com veemência: “últimas quimeras. É preciso recalcá-las.” O homem que era há trinta anos encoleriza-o. Também está colérico com o homem que, trinta anos depois, regressa a esse passado como alguém que procura um paradeiro. Os dois tempos estão separados por uma escala intemporal: o tempo tem a sua medida, mas a curadoria das memórias diligentemente reservadas em fita magnética mantém-no perene. Até que o homem não se esqueça de viver o presente, amarrado ao leme que, em forma de ardil, as bobines desaconselham.
17.4.23
Triplo salto
Só escrevia a tinta da china. Não era por ser sinólogo (nem sabia o que era um sinólogo). Essa palavra só lhe fazia lembrar “análogo” ou “enólogo”, e não haveria de vir ao conhecimento, após a imperativa visita ao dicionário, que um sinólogo fosse análogo a um enólogo.
Pela tarde, ouviu dizer que deus foi despejado. Um senhorio neoliberal, daqueles que é praticante inveterado da usura, não tomou em consideração a idade vetusta de deus, nem os outros predicados sobre-humanos que, garantem os crentes, habitam nos limítrofes de deus. (O senhorio, habitual confrade da missa dominical – há que prevenir o inferno – sabe que deus não conhece a usura da vingança.) Com as suas capacidades inestimáveis, deus já falou com o primeiro-ministro. Entende-se, agora, aquela lei de confisco da propriedade privada que o governo ofereceu aos justos. E deus, afinal, podia ser companheiro de armas do sociólogo do Choupal, não fosse dar-se o caso de ser assexuado.
Ao chegar à noite, antes do jantar (restos que andam pelo frigorífico), a caneta de tinta da china tinha de ser reabastecida. Ainda bem que a tinta da china não é fabricada nas refinarias onde o petróleo é transformado nos combustíveis que enfurecem os defensores do ambiente. Ainda bem que a Rússia não produz tinta da china. Não é por acaso que a tinta não se chama tinta da Rússia. Não será a estulta guerra que vai conduzir à míngua de tinta da china, à míngua de literatura (dos atávicos que só escrevem com tinta da china).
À hora do jantar, mesmo antes da sobremesa (o resto de um pudim francês made in Setúbal), soou a campainha. Quando a campainha soa, soa a companhia. Podia ser uma das vizinhas que pedem um punhado de sal, ou meia dúzia de ovos para fazer um pudim francês made in Setúbal, ou coisas tão improváveis como detergente para a máquina de lavar louça, o utensilio para desentupir as sanitas, ou noz moscada, ou assuntos mais prováveis como a satisfação de uns súbitos desejos inconfessáveis (não vá o sacerdote incógnito, na hora da expiação de pecados, sentir-se tentado a mudar para aquele prédio). Era o poeta desengonçado que vinha pedir dinheiro emprestado. Outra vez. Já vinha ébrio, àquela hora (outra vez). Já perdeu a conta. Dele não se diga que foi responsável pelo crédito malparado. Não há estacionamento aprovado para o crédito se arrumar.
Passada a noite, e depois de uma olímpica arenga com a preguiça que foi adiando a saída da cama, hesitou se havia de tomar banho. Estava quase a vociferar interiormente “maldita preguiça”, mas ela não tem culpa de ele ser preguiçoso. Viver sozinho tem destas regalias: as únicas contas que presta são à própria consciência. Como a consciência está em vias de extinção, grande parte dos problemas existenciais nem sequer sobe ao tabuleiro onde as peças se movimentam. A vida tornou-se leve. Um dia destes, ao sorrir depois de constatar a leveza da vida, foi acossado por uma dúvida: a leveza da vida não é paredes-meias com a frivolidade?
Afinal teria de empregar a palavra “maldito” durante a manhã: malditas eram as interrogações que conseguiam espreitar pelo periscópio. Ah!, como ser submarino lhe trazia um conforto interior que andou desaproveitado no tempo pretérito. Prometeu(-se): “durante a manhã ainda vou recitar o poema do dia”. Só tinha de encontrar o poemário e não se esquecer da jura.
Para sua surpresa (está habituado ao olvido militante), não se esqueceu da récita e não demorou a encontrar o poemário. Do poema do dia (Filipa Leal, Padaria, in Fósforos e metal sobre imitação de ser humano, Assírio & Alvim), estas estrofes colheram a sua atenção:
Vou mudar de casa e procurar outra padaria
e nessa altura talvez venha aqui despedir-me de ti
também.
Eu ia, confesso-te, persistir no erro, na casa e na padaria,
mas fui despejada de tudo.
Afinal, não foi só deus que foi despejado.
14.4.23
Microclima (short stories #421)
As pétalas em fome cobrem o caudal. Nos pequenos barcos, os pescadores esperam pacientemente pela faina. O luar desenhado no rio parece abrir uma estrada que se alarga à medida que fica próxima do lugar onde se encontram. Um pescador detém-se na magia do luar retratado no rio. Aquela estrada de luz acinzentada formula o espectro da esperança, mas não sabia porquê. É do domínio daquelas coisas que existem e não precisam de fundamentação, ninguém é capaz de encontrar uma explicação. O pescador pensa em tantas coisas na vida que não são convincentes. Pensa como somos educados desde pequenos a aprender a resignação como valor apreciado. Dizem-nos: não dês importância a esse contratempo, asfixia a angústia que se hasteia por dentro das veias, passa ao dia seguinte. E o dia seguinte é tradução do sortilégio: outra é a página do calendário, encontra-se a alquimia que é o disfarce dos contratempos e das angústias que torcem o braço. O luar não disfarça o seu disfarce. A lua não está deitada sobre o caudal. É só uma projeção da sua luz. Se aqueles pescadores meterem as mãos à agua para apanharem um módico do luar, depressa entendem que é só água que trazem ao regaço. A estrada de luar que ornamenta o rio é um disfarce. E eles, encantados pela sortilégio do luar, penhorados pela ilusão da estrada de lua narrada no dorso do rio, ficam enfeitiçados. Como se o luar vertido no rio os trouxesse a um estado lisérgico e começassem a caminhar sobre essa estrada. Diriam, em seu abono, que os milagres não podem ser tutelados apenas por entidades divinas ou por santos seus procuradores. O luar é matéria-prima da poesia. Não se desminta a estrada de luar escrita no dorso do rio. Por mais que se liquesça nas mãos ávidas dos pescadores, em forma de microclima.
13.4.23
Jurar pela honra, que é pouca
Quando tomam posse, os servidores públicos juram sobre a Constituição que, pela sua honra, cumprirão as funções com zelo e esmero. Enquanto servidores públicos, devem travar os ímpetos pessoais para se dedicarem, em regime de exclusividade, ao interesse público. E juram, pela sua honra, que se comprometem a fazê-lo.
Nunca entendi o conceito de servidores públicos. Se trabalham para o Estado – dir-se-á –, são servidores públicos. Porque o Estado é sobre a satisfação do interesse público. Mas a existência de servidores públicos, assim considerados, é atávico. Como se tratasse de mordomos, todavia todos pimpões, que tudo sacrificam para honrarem o interesse público. Estão destinados a servir o interesse comum; não se fale de generosidade maior do que esta. Contudo, estas pessoas não deixam de ser pessoas. Não se acredite que todos sejam escrupulosamente servidores do interesse público: na hora H, alguns cedem a interesses, confessáveis ou não, que entram no tabuleiro das influências que se jogam na determinação do que é o interesse público e de como devem ser prosseguido. Falar de servidores públicos como serventuários do bem comum, só se for uma metáfora.
Nunca consegui perceber por que se obriga os servidores públicos a jurarem pela sua honra. Quem não tem espantalhos interiores que possam ferir a diligência pessoal não precisa de jurar o que dele se espera enquanto servidor público. Só precisa de jurar quem possa ser assaltado por dúvidas, o descaminho que o pode distanciar de fazer o que se espera que seja feito. Para estes, o juramento é uma mnemónica. Obrigá-los a jurarem pela sua honra é uma espada que fica pendida sobre as suas cabeças. O juramento em nome da honra será o palco de todos os seus pesadelos, em nome da sindicância constante do servidor público (e, provavelmente, num acesso de assimetria, mas não de outros servidores públicos). Para quem tiver coluna vertebral à prova dos outros, a desonra é das maiores injúrias. Não precisam da coação do juramento, nem que lhes avivem a importância da (sua) honra.
Às vezes, os servidores públicos confundem a natureza dos serviços que prestam. Deixam de ser imparciais. Deixam de servir o bem comum. Violam o juramento. E mandam a honra pela sarjeta, juntamente com a probidade que, fica demonstrado, alguns deixaram de ter e outros possivelmente nunca tiveram. Às vezes, e não são poucas, é o retrato dos últimos tempos.
De regresso ao início do raciocínio, talvez fique provado que é imprescindível jurar em cima da honra própria. Pois se há tantos para quem as juras são moeda fraca, para quem a honra é uma cortina de fumo que apenas empresta uma máscara sem fundo, a cilada de quem afinal não serve o público. Os outros, para quem a honra e uma jura não são a parte fraca de quem são, jurar pela honra é uma tautologia. Um insulto à sua honra. A honra está tão acima na escala de valores que não se compadece com juras. São as vítimas de uma igualdade que promove uma discriminação: são eles, que não deviam jurar pela honra, que sentem o insulto de terem de o fazer. Para os demais, permeáveis a outros interesses, o juramento também não fará sentido, se a honra própria é letra morta.
12.4.23
Trespasse
Respiras como um submarino. Escondido. Submerso nas águas dos sonhos sem periscópio. Submerso na água, sem periscópio. Não sentes o sal que te cerca. Não sentes a gramática dos sonhos que irrompem desordenadamente, à medida das esculturas que mitos seráficos compõem nas suas harpas mágicas.
Se houvesse um poema militante, angariavas a sua pertença. Chamavas as estrofes pelo teu nome. Não te assustava o estigma do plágio. Ele há tantas contas que se enturvam pelo plágio e ninguém se lamenta, ninguém contesta a desautoria.
Se as ondas não tivessem sido embainhadas por um Neptuno sem rosto, dirias que a tempestade se amotinou contra os navios que foram apanhados no vento voraz. Vistos à distância, os navios paquidérmicos parecem pequenos botes, quase a serem engolidos pelas vagas medonhas que desassossegam o mar que é a partícula apassivante das tempestades sem critério. Os dias parecem noites. As noites parecem: pesadelos intermináveis. Que trespassam a carne dos marinheiros sem que eles saibam, exilados no seu sono, sem se importunarem com o sismo interminável que a tempestade causa no navio. Se a indiferença pudesse vir a terra, os marinheiros teriam tanto a ensinar. E tu, submerso, no palco de todas estas tribulações, espetador atento.
A silhueta da cordilheira desmata o intervalo na viagem. O navio sente a força gravitacional da terra. Dir-se-ia que nem precisa de combustível e de comandante para navegar até ao porto. O navio que fende os mares está cansado deles. Ao casco impecável, sem sinal de derruimento, desapetecem as águas salinadas. Os olhos cansados dos marinheiros não são porta-vozes dos dias a fio do navio cercado pelo mar omnipresente. Esses foram dias de esquecimento. Do esquecimento de que é feita a terra firme a que os pés dos marinheiros pedem consolo. A silhueta torna-se mais nítida. Uns lampejos de casario começam a crescer na paisagem. Tanto mar é um lancinante apelo para o seu antídoto. Vir a terra é o antídoto. Tu, continuas aprisionado no teu submarino. Agora, és o seu único tripulante.
Os continentes não se medem pela terra que os compõe – dizes, constantemente, como se essa fosse a tua teoria centrípeta. Medem-se pela água que os separa. Esse é o lugar onde habitam as dissemelhanças. Onde há vastas áreas sem serem povoadas pela identidade de alguém. Quem passa por essas rotas é visitante efémero. São caminhos percorridos para se chegar a um cais demandado. Os luares não são centelhas que arremetem contra a escuridão dos mares atravessados. Deles é o mistério sem paradeiro.
Tu, penhor da tua imensa fragilidade, estás à mercê do luar. Do luar que te trespassa até seres de ti mesmo uma transparência. E nem o submarino impede a translucidez.
11.4.23
Libreto
As biografias têm centenas de páginas. Confundem-se, repetidamente, com hagiografias. Mesmo quando narram bizarrias, ou acontecimentos que não orgulhariam o biografado (ou, se calhar, antes pelo contrário, quando ele alinha pela rebeldia metódica), ou provas da pungente fragilidade que ostensivamente mostra o que todos sabemos ser intrínseco a qualquer biografado – a condição humana.
Centenas de páginas, dirão, é só uma amostra das vidas que são sempre mais longas do que as páginas que as condensam. Esse é um erro que alimenta a cacofonia das biografias. As vidas não se aferem pela quantidade de tempo. Nem todo o tempo conta para uma biografia. A maior parte do tempo de uma vida é inconsequente. A menos que se queira que uma biografia seja um amontoado de banalidades e lugares-comuns, a meias com um enfadonho desfilar do tempo ao longo das páginas que depressa se transformam no melhor soporífero para cuidar de insónias.
As biografias deviam limitar-se a um punhado de páginas. Como se fossem libretos, com a economia de enredo que é própria das vidas que se resumem a um punhado de acontecimentos. Com a vantagem de as tornar mais atrativas enquanto literatura. Dando o flanco a alguma ficção consciente e da qual o leitor seria advertido antes de se deitar à leitura do libreto-biografia. Ou para adivinhar as partes fantasiadas, ou para ficar de pré-aviso em que páginas a ficção se substituía ao acontecido. O autor da biografia admitiria o que muitas biografias escondem. Num liberto-biografia, não haveria lugar a quase beatificações como nas biografias que se confundem com hagiografias.
O liberto teria de ser enxuto. Evitar adjetivos. Fugir da escrita gongórica, como se o biografado fosse de uma estatura intelectual que não é acessível ao comum dos leitores. O autor da biografia empregaria figuras de estilo que expressassem por outras palavras o que as biografias banais descrevem, tornando as vidas biografadas um interminável rol de banalidades que se misturam com a singularidade do biografado (outra falácia: somos todos singulares).
O biografado subiria a palco como o ator principal da vida que levou. Sem ser uma exibição de egocentrismo, pois ser o ator principal da sua vida confere com o padrão habitual: cada um é o ator principal na vida que lhe diz respeito. Contá-la com figuras de estilo e linguagem às vezes cifrada repudia a estrutura banal das biografias, dando-lhe uma dignidade que muitas vezes os próprios são sabem atribuir às próprias vidas.
Ou então, num ato de humilde busca pela conservação do anonimato, deixa-se lavrado em testamento, para memória futura, a proibição de ser sujeito de uma biografia. Já os que aceitam ser biografados em vida, não estão longe do narcísico devaneio de quem aceita ser busto em vida; não será sua a mnemónica desse testamento.
10.4.23
Sub-15 (quarto de hora)
O ato de absolvição: um atraso que não leva as consequências de um atraso. Fala-se de costumes. De não haver medida certa para o tempo porque não se acerta a medida pelo tempo que é dado a haver. Outros, menos prosaicos, falam do “quarto de hora académico”: ninguém leve a sério as horas marcadas, que elas se afinam pelo consuetudinário quarto de hora de atraso.
É como se os relógios tivessem uma sombra que os adultera. A projeção dessa sombra dita a hora certa quinze minutos depois. Se alguém redefinisse as medidas do tempo, adiando por quinze minutos o acerto dos relógios, um novo quarto de hora académico, o quarto de hora académico ao quarto de hora académico, seria inventado. O quarto de hora académico é convenção sem ser reconhecida como tal. Para não se correr o risco de acumular sucessivas camadas de quartos de hora académicos umas em cima das outras – e tudo ficar procrastinado, sem prescrição.
As autoridades que subsidiam a investigação podiam patrocinar uma demanda pela origem deste costume. Para saber quem inventou o quarto de hora académico e como se vulgarizou, dentro e fora da academia. E por que se adia a pontualidade pela medida sub-15. Mas talvez não seja do interesse dos académicos irem às raízes do quarto de hora académico. Primeiro, seriam eles os denunciantes de um costume que é lei de bronze no meio; os seus pares, entronizados no hábito dos quinze-minutos-depois, não perdoariam o saxónico dever de cumprir horários. Segundo, seriam eles a atestar que tudo está endemicamente atrasado. Com o atraso enraizado no quarto de hora académico.
Seria como definir a etimologia do vício incorrigível de não se cumprir o tempo tabelado. Se uma regra oferece quinze minutos para perorar, o orador ultrapassa o prazo e por largo excesso. Da mesma forma que não sabe acertar os relógios pela ausência do quarto de hora académico, não consegue respeitar a medida do tempo; é o quarto de hora académica virado do avesso. A metáfora da desorganização interior, de como é responsável por um arrastar do tempo que é a dilação incorrigível a que se presta. De dentro para fora, cobrindo, como hábito, um atraso. Estrutural.
A menos que alguém proponha o quarto de hora académico descontado do quarto de hora académico. Num ato de anulação que reponha os créditos (por firmar) da pontualidade.
7.4.23
Quem vai à igreja não é fumador
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Quanto saltou o atleta do triplo salto? O salto foi válido – ele não pisou a linha para além da sua fronteira? Talvez os árbitros estivessem desatentos, ou propositadamente desatentos. Não seja julgada a intencionalidade, que um espectro pode-se abater sobre as nossas cabeças e acabamos reduzidos ao minimalismo de uma estatística.
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Não se sabe se os fatos dos astronautas são à prova de bala. Ou se confessam pecados quando estão no espaço. Se conseguem ver as baleias que dominam os mares, ou uma quintessencial obra de arte numa galeria. Se preveem as marés que se jogam na gramática dos diferentes oceanos. Ninguém sabe se o sono dos astronautas dispensa ansiolíticos. Ou se são assaltados pelo medo do pecado – assim como assim, quando estão no espaço, estão literalmente no céu.
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Se em vez de amadores fôssemos humildes, o que seria dos gongóricos que desfilam posando as comendas que se autoimpuseram?
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As medas de palha, cilindricamente ordenadas umas ao lado das outras, reinventam a paisagem. Foram humanas as mãos que ceifaram a matéria-prima, e humanas foram as mãos que juntaram os juncos até formarem as medas prontas a serem alimento das reses. Não se diga que não há gente ao serviço das bestas.
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De vez em quando, os olhos salgados saltam as fronteiras dos idiomas e procuram saber de que são compostas as lágrimas. Delas não se diga que são como a lava emergente, que a lava confessa o sangue telúrico que se desamotina nas veias cansadas de tanta acrimónia. A jugular lateja, como se quisesse dar as horas a quem delas precisa, o que não é nunca o caso de quem se abraça involuntariamente à angústia. O sal que mareja os olhos é a colheita precipitada dos que se pressentem a destempo. Todos aqueles que se desobrigam das angústias circunstanciais e das outras que ambicionam ser existenciais são trunfos para as delicodoces colheitas tardias.
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Estava escrito numa parede: as pessoas que vão à igreja não são fumadoras. Para que conste, não foram os poderes eclesiásticos a castrar esse prazer. Para que conste: que o clero anda de mais acossado.
6.4.23
A dança dança-se com os olhos
Os estudos estudam o que às vezes não precisa de ser estudado. É recorrente, na natureza humana, a precisão com que acertamos ao lado: a palavra a despropósito, um gesto que devia ter ficado guardado, uma decisão que não devia ter saído do estirador da indecisão, o mundo que devia ter amanhecido só na madrugada seguinte. Ou a dança que se ensaia, sabendo que se é desajeitado e que dois são os pés esquerdos.
Mas depois dizem: ninguém pode colidir com as fragilidades pessoais. Que a ninguém seja permitido gracejar a propósito do desajeitado estado da dança que se ensaia. (A menos que julguemos que, desse modo, se restringe a liberdade de expressão dos outros, no exercício da sua legítima crítica.) Os dançarinos sem dotes saltam para a pista de dança e é todo um desgraçado arraial de inestética que ocupa o espaço, os gestos desengonçados a poluírem a visibilidade limítrofe. Os outros, riem-se. Ou ficam tão atónitos que o seu queixo cai do sítio.
Intimidados, os dançarinos gorados guardam para si o desejo de abanar as ancas em palco público. Poderão fazê-lo escondidos do resto do mundo, para não se submeterem ao tribunal marcial da opinião que se rege por apertados padrões de estética. Não se fala de dançarinos que fazem da dança profissão, ou de juízes que são peritos na arte. Fala-se do senso comum que avalia os dotes (ou a falta deles) quando alguém dança com o corpo inteiro. Os dançarinos fracassados refugiam-se num exílio interior. Têm pudor, prevenindo as impiedosas manifestações de desprezo, ou apenas a ironia sobre a sua desarte dançante. Poupam uns quantos ao ultraje da estética e uns outros a serem confrontados com a risibilidade das suas danças.
E há os que apenas não contemplam a hipótese de dançar. Os dois pés esquerdos são a impossibilidade que se manifesta, a caução para a recusa da dança. Ou, a coberto do desajeito que os consome, nunca chegam a cultivar o prazer da dança. Limitam-se a dançar com os olhos, enquanto os dedos percutem numa superfície de amparo e acompanham a música. Dançam com os olhos. Ou, no máximo, com os dedos que percutem na superfície de amparo, às escondidas de qualquer observador diligente.
5.4.23
O estuque está a ruir e diz-se que a esperança foi hipotecada (ensaio sobre a conjuntura)
1. Somos uma espécie admirável, refém de inúmeros paradoxos – e talvez essa seja a origem da riqueza antropológica. Fazendo uma redução à identidade nacional, as ambiguidades que nos atiram para estados de alma opostos são parte da idiossincrasia. Quando colocados perante uma encruzilhada, tendemos à polarização: somos acantonados em reações excessivas, como se a moderação tivesse sido despromovida a um lugar ermo. E, no entanto, depressa nos refugiamos no situacionismo de que são feitas as costuras da “normalidade”. É quando abandonamos as reações excessivas.
2. Uma sondagem do ICS/ISCTE confirmou a decadência do PS. Muito embora esteja em empate técnico com o PSD, grande parte dos inquiridos não antevê que o líder deste partido seja alternativa credível. Somados, os dois partidos do (soi-disant) arco da governação representam 60% das intenções de voto. Se se traduzissem numa distribuição de deputados, muito provavelmente os dois partidos representariam mais de dois terços dos deputados da Assembleia da República. Assim é o sistema eleitoral, que privilegia, ao mesmo tempo, a formação de maiorias que não impeçam a governabilidade e a possibilidade de pequenos partidos terem lugar no parlamento.
3. Há quem esteja perplexo com este estado de coisas. Pedro Norton lamenta, no Público, que a “fábrica de esperança” que é a democracia esteja confrontada com um dilema existencial. O partido do governo perde popularidade (por culpa própria) sem que o maior partido da oposição, a sua alternativa “natural”, capitalize as perdas. É neste situacionismo que fermenta o princípio geral da passividade em que medram muitos cidadãos; somos hospedeiros do situacionismo. Vivemos agarrados ao passado sem percebermos que ele pode ser um estigma que nos impede de ver para além do espartilho. Este critério binário de análise política é limitativo. Até hoje, os partidos do “bloco central” têm sido os principais atores do sistema político. Nada obriga a que esse papel se perenize se os dois maiores partidos estão manifestamente em crise e são eles que confinam com a desesperança.
4. É preciso dar espaço à criatividade como caução da reinvenção do sistema político. Numa nota pessoal, posso cair em contradição com os argumentos precedentes se admitir que me inquieta a eventualidade de os partidos das extremas terem um papel mais relevante, talvez até com lugar no governo. Este é um dos paradoxos que nos consome; não parece ser um paradoxo heurístico, do qual se avive uma centelha em forma de solução. A menos que a reinvenção venha de dentro do sistema, como temos exemplos noutros países.
5. O descontentamento está por todo o lado. Com o fim da geringonça e da lua de mel a três, era de prever que a contestação social tomasse conta da rua. O secretário-geral do PCP, um partido em degenerescência, apanhou o comboio da contestação social e fez das manifestações de rua um eletrocardiograma da sociedade portuguesa. Pelo caminho, protestou contra os institutos de sondagens, que aparentemente congeminam uma conspiração contra o PCP. Só assim entende os fracos resultados do partido em sucessivas sondagens. De acordo com a fina análise do secretário-geral do PCP, isto não quadra com a força gravitacional que provém da contestação social nas ruas. Eis uma lição de oportunismo político e de manipulação. Confundir as vozes de protesto, que por muito berrarem são audíveis de Bragança a Sagres, com o pulsar da sociedade, é excessivo. Depois, há eleições e o PCP anda pelos 5% da sua rua da amargura.
6. Mas o descontentamento não se limita às ruas. Subimos ao palco onde o descontentamento é enredo. Falamos com pessoas e sentimos o descontentamento a queimar as veias. 64% dos inquiridos na sondagem do ICS/ISCTE concordam que o desempenho do governo é mau ou muito mau. O governo esconde-se nas vicissitudes da conjuntura internacional. Ele foi o COVID-19. Agora ele é a guerra na Ucrânia e a espiral inflacionista que amarram as mãos do governo. As coisas vão mal, é reconhecido pelo primeiro-ministro, num acesso de humildade bem estudado. Mas é por causa do mundo, que está em convulsões. E as pessoas, que têm memória curta, merecem que a memória seja avivada. Quando o governo se gabava das proezas da política económica, nem o primeiro-ministro nem o ministro das finanças tiveram a hombridade de admitir que as proezas foram à boleia da conjuntura favorável (crescimento da economia mundial; e ajuda do Banco Central Europeu, que andou a comprar dívida pública e manteve as taxas de juro baixas durante muito tempo). As coisas vão mal, culpa-se o mundo; as coisas andam bem, devemos um elogio ao governo. E quem denuncia a manipulação?
7. Há mais espaço para a contestação: um artista plástico, Carlos Oliveira, instalou uma escultura, chamada “Manguito”, junto ao Palácio de Belém. O manguito simboliza o descontentamento contra a “desgovernação”. Antes que a Câmara de Lisboa, em mesquinha atitude de respeitinho, tivesse removido a instalação artística, o presidente da república acolheu-a no Palácio de Belém. Não vou pelos meandros da segundas intenções que são o retrato de uma relação esquizofrénica entre o presidente da república e o primeiro-ministro. Prefiro deter-me no simbolismo da obra: aos incompetentes, fazemos um manguito. Um manguito simbólico, mas que – adivinho – se esgotará na efemeridade do gesto. Depois, esquecemo-nos, sitiados na brevidade da memória, e voltamos à “normalidade”. À normalidade que é a nossa prisão.
8. Outra vez as ambiguidades que nos cicatrizam: inventaria-se todo este descontentamento contra o governo e o maior partido da oposição e, todavia, na “hora H”, 60% (ou mais) do eleitorado quer que tudo continue como dantes. Somos estruturalmente hostis à mudança, porque a mudança transporta a incerteza. Preferimos continuar a ser mal governados a abrir uma janela de oportunidade à reinvenção do sistema político. Porque a incerteza nos assusta mais do que a incompetência e o arrastar do estado comatoso a que chegámos. Somos, ao mesmo tempo, reféns e fautores desta ambiguidade. E desperdiçamos a alquimia que está à (nossa) mão de semear.
4.4.23
Olho de bruxa, bruxa farejada
Os candeeiros da rua trepidavam. Como se um sismo estivesse a acontecer. Era só do vento, que assobiava fúria contra o mobiliário urbano, contra os telhados que já tinham sido despojados de umas quantas telhas, contra os sonos mais leves. Em surdina, uma música que parecia ter afinidades com jazz. Não se sabia a sua origem. A noite sem contemplações avançava, trespassada pelo vento insubmisso. Uns vultos dissolviam o silêncio da noite. Estavam apostados em negar provisão à ideia de que a noite era um lugar ermo.
À sombra de um candeeiro, uma mulher envelhecida debatia-se com a insónia. Rebelara-se contra o dizer comum que as mulheres não saem sozinhas à rua à noite, porque a noite, em seu estado avançado, é um perigoso punhal que se abate contra as mulheres indefesas. A velha estava capaz de jurar que não tinha medo dos meliantes que andam na rua: se eles fogem do dia movimentado, é porque temem a multidão, temem pessoas, e preferem investir contra o património, o indefeso património. Não vão atacar uma velha sem forças, de que não podem levar algo que seja valioso.
Um dos vultos cambaleantes conseguiu apurar o vulto da mulher envelhecida no lado oposto da praça. A curiosidade – que há de ser a sepultura de muitos mortais – levou-o, e aos companheiros de estroinice, a avançar no sentido da mulher. Tão depressa estugaram o passo como o retesaram, quando o rosto da mulher se tornou visível. Por muito que a sua lucidez não estivesse nas melhores noites, assustaram-se com o rosto medonho da velha. O seu olhar era esbugalhado, como se os globos oculares fossem explodir para cima dos arremedos de gente que se abeiraram dela.
Um dos rapazes meteu-se entre a velha e os companheiros e exclamou: “parem! Digo: parem!”, com toda a contundência que o estado alterado permitia. Foi o primeiro a medir o olhar tumultuoso da velha, logo entendido como se pertencesse a uma bruxa. Era um olhar que parecia esvaziar quem nele se debatesse. E como acontece quando um grupo de rapazolas se candidata a praticar umas maldades num animal indefeso e depois recua nas intenções, assustado com a agressividade do animal (a tradução do espírito de sobrevivência), os rapazes ficaram inertes, a um punhado de palmos da velha, que parecia absorta.
Um dos boémios especulou que a velha era uma bruxa e, não fosse lançar um feitiço contra os rapazolas, o mais avisado seria abandonar o lugar e deixar a velha entregue à sua paz. Nos dias que se seguiram, os rapazolas andavam transidos de medo, com o sono aos solavancos, a ideia fixa de que a velha podia ter ateado um feitiço que os deixasse impotentes, ou sem capacidade para articular duas frases seguidas, ou sem apetite para outros prazeres da vida. Apesar de acreditarem em bruxas só quando sobressaltam os outros.
Da velha não voltou a praça a dar notícias e as noites que vieram a seguir foram serenas, o vento quase calado.
3.4.23
As adolescentes de barriga ao léu (em pleno Inverno) e a teoria da autoexclusão
Está um frio que pede agasalho. Pela rua fora, adolescentes passeiam os seus umbigos descobertos. Elas desfilam com dois palmos de pele abdominal sem agasalho, desafiando a meteorologia e causando arrepios aos outros, que através dos arrepios são procuradores em nome das desmioladas adolescentes sem frio.
Em vez de se questionar se as adolescentes não têm frio quando o termómetro estacionou logo acima da fronteira entre os graus positivos e os graus negativos, a pergunta deve ser outra: o que leva as adolescentes térmicas a mostrarem as suas rasas barrigas? Sendo uma idade em que a estética conta muito, as adolescentes movem-se pela antinomia. Olham para as mães e para os pais e acham-nos obesos, com protuberantes barrigas que são um insulto aos cânones da estética. Não querem ser assim. E como o conseguem, exibem orgulhosamente o que os progenitores deixaram de ser, por desleixo (ou apenas porque a biologia conspira contra eles).
As adolescentes não são imunes ao frio invernal. São mais sensíveis à estética que sabem não ser respeitada quando os progenitores (e outros da sua geração) provam, em corpo próprio, que se desmazelaram no cuidado dos seus corpos, exibindo atrozes barrigas que deformam as silhuetas. Regem-se pelo princípio da autoexclusão. Querem mostrar o que os pais e as mães têm vergonha de mostrar. Nem que tenham de rapar um frio glaciar.
As barrigas adolescentes propositadamente ostentadas durante o Inverno exercem um efeito terapêutico: as meninas, de tanto frio apanharem, e de tantas constipações terem sido assim causadas, constituem uma bolsa de anticorpos. Podem andar sossegadamente a meio de um nevão com os umbigos à mostra, que já ganharam resistência para não serem hospedeiras dos vírus maus do Inverno.
Ou então, tudo não passa de uma questão de umbigos à mostra (metáfora do umbigo como representação do ensimesmar). As adolescentes que desafiam a invernia com as suas lisas barrigas à mostra apenas ostentam lisas barrigas que, por o serem, satisfazem as balizas da estética. Pode não ser um reflexo condicionado que dá corpo ao princípio da autoexclusão. Não estão preocupadas em estarem a cento e oitenta graus a leste da fealdade não disfarçada das avantajadas barrigas das mães e dos pais. A sua beleza – a estética, outra vez – não é feita da inestética dos outros.