27.4.23

O mar é deserto

Gorillaz ft. Beck, “Possession Island” (in Jimmy Kimmel Live), in https://www.youtube.com/watch?v=JaFNZaw7frM

O mar é como um deserto, a água em vez da areia ou da estepe, o mar inteiro em vez de ausências. O mar imenso agiganta a nossa pequenez. Estamos à sua mercê, porque é o mar que orquestra o clima, é o mar que é generoso na faina desembarcada pelos pesqueiros, é o mar que se convola no dorso das tempestades que o mostram, iracundo e sublevado – é o mar que está à frente no domínio do indomável.

Mas o mar talvez não seja deserto. Pois a voz que se entoa é feita de salitre que se sobrepõe em camadas, fazendo a pele de que sou feito. É por ele que as lágrimas são lidas. É da têmpera rija do mar que se compõem os ossos que se não estilhaçam no rumor do primeiro contratempo. O mar não é deserto por ser o túmulo de tantos marinheiros, por ser o santuário de tantas carcaças puídas de embarcações naufragadas. E por todas essas almas e amontoado de ferro retorcido que resiste à erosão do sal, muitas outras são porta-vozes sem saberem. 

O mar que se aformoseia à passagem dos navios por sua vez dele enamorados é o panteão onde os olhos de tantos poetas se embeberam antes de se sacrificarem no dedilhar da poesia. O mar que se funde com precipícios vertiginosos e em areais planos, o mar que adormece só depois de a última pessoa adormecer, o mar que está de atalaia por nós. O mar que une os mares que se dizem separados – mas não há mares separados, por muito que as convenções assinaladas se penhorem pelos nomes dos diferentes mares. Do mar retemos a gramática em que assentam as vidas que o encontram como sedução. 

No mar são depostas as cinzas derradeiras, se não for proibido por lei (ou apesar de o ser). E no mar as cinzas mortuárias não se dissolvem, engrandecem o mar, fica mais volumoso. As cinzas avivam-se nas ondas que se encrespam pela brisa tardia, como se o mar ficasse arrepiado ao sentir as cinzas mortuárias e soubesse, num impulsivo lampejo de imagens sucessivas, recitar aquela vida inteira. Num volteio magnífico, em perfeita coreografia, o mar que se oferece aos que dele tiram esboços mentais a partir do cais escreve em letras douradas o derradeiro epitáfio. Imortalizando uma vida deixada à sua tutela. 

O mar, não é deserto. 

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