11.4.23

Libreto

Linda Martini, “Sem Tédio dos Prazeres”, in https://www.youtube.com/watch?v=OJ2urlStRYQ

As biografias têm centenas de páginas. Confundem-se, repetidamente, com hagiografias. Mesmo quando narram bizarrias, ou acontecimentos que não orgulhariam o biografado (ou, se calhar, antes pelo contrário, quando ele alinha pela rebeldia metódica), ou provas da pungente fragilidade que ostensivamente mostra o que todos sabemos ser intrínseco a qualquer biografado – a condição humana. 

Centenas de páginas, dirão, é só uma amostra das vidas que são sempre mais longas do que as páginas que as condensam. Esse é um erro que alimenta a cacofonia das biografias. As vidas não se aferem pela quantidade de tempo. Nem todo o tempo conta para uma biografia. A maior parte do tempo de uma vida é inconsequente. A menos que se queira que uma biografia seja um amontoado de banalidades e lugares-comuns, a meias com um enfadonho desfilar do tempo ao longo das páginas que depressa se transformam no melhor soporífero para cuidar de insónias. 

As biografias deviam limitar-se a um punhado de páginas. Como se fossem libretos, com a economia de enredo que é própria das vidas que se resumem a um punhado de acontecimentos. Com a vantagem de as tornar mais atrativas enquanto literatura. Dando o flanco a alguma ficção consciente e da qual o leitor seria advertido antes de se deitar à leitura do libreto-biografia. Ou para adivinhar as partes fantasiadas, ou para ficar de pré-aviso em que páginas a ficção se substituía ao acontecido. O autor da biografia admitiria o que muitas biografias escondem. Num liberto-biografia, não haveria lugar a quase beatificações como nas biografias que se confundem com hagiografias.

O liberto teria de ser enxuto. Evitar adjetivos. Fugir da escrita gongórica, como se o biografado fosse de uma estatura intelectual que não é acessível ao comum dos leitores. O autor da biografia empregaria figuras de estilo que expressassem por outras palavras o que as biografias banais descrevem, tornando as vidas biografadas um interminável rol de banalidades que se misturam com a singularidade do biografado (outra falácia: somos todos singulares). 

O biografado subiria a palco como o ator principal da vida que levou. Sem ser uma exibição de egocentrismo, pois ser o ator principal da sua vida confere com o padrão habitual: cada um é o ator principal na vida que lhe diz respeito. Contá-la com figuras de estilo e linguagem às vezes cifrada repudia a estrutura banal das biografias, dando-lhe uma dignidade que muitas vezes os próprios são sabem atribuir às próprias vidas.

Ou então, num ato de humilde busca pela conservação do anonimato, deixa-se lavrado em testamento, para memória futura, a proibição de ser sujeito de uma biografia. Já os que aceitam ser biografados em vida, não estão longe do narcísico devaneio de quem aceita ser busto em vida; não será sua a mnemónica desse testamento.    

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