14.4.23

Microclima (short stories #421)

Morphine, “Buena”, in https://www.youtube.com/watch?v=EthwxA_2lFQ

          As pétalas em fome cobrem o caudal. Nos pequenos barcos, os pescadores esperam pacientemente pela faina. O luar desenhado no rio parece abrir uma estrada que se alarga à medida que fica próxima do lugar onde se encontram. Um pescador detém-se na magia do luar retratado no rio. Aquela estrada de luz acinzentada formula o espectro da esperança, mas não sabia porquê. É do domínio daquelas coisas que existem e não precisam de fundamentação, ninguém é capaz de encontrar uma explicação. O pescador pensa em tantas coisas na vida que não são convincentes. Pensa como somos educados desde pequenos a aprender a resignação como valor apreciado. Dizem-nos: não dês importância a esse contratempo, asfixia a angústia que se hasteia por dentro das veias, passa ao dia seguinte. E o dia seguinte é tradução do sortilégio: outra é a página do calendário, encontra-se a alquimia que é o disfarce dos contratempos e das angústias que torcem o braço. O luar não disfarça o seu disfarce. A lua não está deitada sobre o caudal. É só uma projeção da sua luz. Se aqueles pescadores meterem as mãos à agua para apanharem um módico do luar, depressa entendem que é só água que trazem ao regaço. A estrada de luar que ornamenta o rio é um disfarce. E eles, encantados pela sortilégio do luar, penhorados pela ilusão da estrada de lua narrada no dorso do rio, ficam enfeitiçados. Como se o luar vertido no rio os trouxesse a um estado lisérgico e começassem a caminhar sobre essa estrada. Diriam, em seu abono, que os milagres não podem ser tutelados apenas por entidades divinas ou por santos seus procuradores. O luar é matéria-prima da poesia. Não se desminta a estrada de luar escrita no dorso do rio. Por mais que se liquesça nas mãos ávidas dos pescadores, em forma de microclima.

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