18.4.23

O presente que se pressente na voz do passado

Sigur Rós, “Varúð, in https://www.youtube.com/watch?v=Gf1h2PMPCAo

“A última gravação de Krapp”, de Samuel Beckett, encenação de Nuno Carinhas, Teatro Carlos Alberto.

As dores vêm agarradas à barriga que aloja o passado. A nostalgia, dolorosa, resgata as frações que ficaram emolduradas pela voz do homem que foi testemunha dos estados de espírito trinta anos antes. A voz está igual. Mas o sangue de hoje fala um idioma visceral. 

Trinta anos depois, a recusa do passado. A gramática da gravação não dança com o presente que se exerce como sua sindicância. O esquecimento podia ser o antídoto contra a voz resgatada do passado. Ou apenas a vontade de a deixar lacrada no tempo emérito. Em vez disso, a gravação, aqui e ali interrompida, como se a hesitação fosse juiz do sangue gangrenado que ia sendo oxigenado pelo arrependimento. 

O objeto que repetia aquele instante trinta anos depois era um punhal que dilacerava os ossos. Nada do tempo presente se revia naquele fragmento de um tempo que já devia ter sido esquecido. O homem voltava a esse tempo, talvez para lhe ministrar a sepultura definitiva. De cada vez que retoma a gravação, não esconde que este que é agora o desagrada. Joga o passado contra o presente, e não é para legitimar o presente. A gravação aviva a memória: ela não se extingue porque as bobines estão metodicamente inventariadas (e o homem, cinicamente, dedilha as sílabas: “bo-bi-ne”). Toda a sua História, ou pelo menos aquela que ao acaso foi atirada para o caudal de uma biografia ajuramentada, está ao jeito da nostalgia dilacerante. 

Por mais que o pesar acompanhe o som das palavras cimentadas há trinta anos, a existência das bobines atira cal viva a uma desconfiança: o homem não decretou o adeus a esse passado. Revisita a gravação para dizer mal do presente através do maldizer daquele passado em escuta. No estendal da vida, trinta anos encerram muita mudança. Ou apenas um disfarce dessa mudança, arrematada na gravação que parece renegar e que, todavia, se oferece como caução de um tempo presente que precisa de legitimidade.

O homem do presente atira-se ao passado, como se precisasse de o exorcizar. A nostalgia deixa o homem encolerizado. Ajuíza, com veemência: “últimas quimeras. É preciso recalcá-las.” O homem que era há trinta anos encoleriza-o. Também está colérico com o homem que, trinta anos depois, regressa a esse passado como alguém que procura um paradeiro. Os dois tempos estão separados por uma escala intemporal: o tempo tem a sua medida, mas a curadoria das memórias diligentemente reservadas em fita magnética mantém-no perene. Até que o homem não se esqueça de viver o presente, amarrado ao leme que, em forma de ardil, as bobines desaconselham.

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