24.4.23

E (nem sempre) vice-versa

Wilco, “Heavy Metal Drummer”, in https://www.youtube.com/watch?v=ERk4jXi0c1Y

Mote: Mário Centeno, com um misterioso sorriso que vale por mil palavras – ele que lançou a granada e depois fugiu antes que ela estalasse –, atirou-se, com alguma candura e muito sopesar de palavras à mistura, ao programa IVA zero do governo. O Centeno agora governador do Banco de Portugal e outrora ministro das finanças discorda do seu sucessor e do chefe que foi seu e é do seu sucessor. Um exercício de História contra factual traz no coldre a seguinte interrogação: e se Centeno ainda estivesse sob a alçada do mesmo primeiro-ministro, vestia o fraque do economista e ensinava ao chefe como o IVA zero é uma absurdidade económica (e, pelo caminho, social)?

Santas obras, santos ofícios: não é pelo focinho da estultícia que muitos se intimidam com os paradoxos de que são curadores exímios. Não se despromova o direito a virar os graus a cento e oitenta e empenhar a antiga opinião, passando a ser embaixador de uma outra, sua antónima. O direito a mudar, se não tem inscrição constitucional, devia ter. E há sempre a indagação sobre a indumentária que as personagens envergam, pois se ela é uma a personagem obedece a um roteiro e se for outra a personagem sofre uma metamorfose e exterioriza outra narrativa.

Mas, ó insidiosa insegurança de opinadores preclaros, ele há tantas personagens a quem os cânones da higiene ensinaram a mudar de camisa e de roupa interior, que os cânones se mudaram para a coutada do pensamento. E viram o pensamento do avesso, sem ser a Constituição a atestar o direito a mudar a opinião. As personagens, que não omitem uma certa gravitas, infundem pensamento, com o mesmo ar circunspeto, sobre a mesma coisa em sentidos contrários, sem que alguém possa desafiá-los a rebater a acusação de serem vira-casacas. Há casos que, por apurada sensibilidade do ofendido, chegam a ser dirimidos em tribunal – ou ficam-se os valentes ofendidos (ou os ofendidos valentes) pela ostentação da bravura de quem ameaça com a barra dos tribunais, mas o acamar das cinzas que o decurso do tempo transporta não deixa saber se foram adiante ou se assustaram com a exorbitância das custas judiciais.

E mesmo que se levante a hipótese que alguém virou uma ideia sua do avesso e o que hoje é dito contradiz o que disse anteontem, não podem as pessoas curtir as peles do arrependimento, renegando o anteontem e acolhendo com uma centelha de esperança o novo hoje a que se abraçaram? Nós, os que temos um radar sofisticado, sempre à espera de apanhar alguém em falso e distraídos perante as armadilhas que deixamos no nosso próprio caminho, é que somos implacavelmente incompreensivos. Ele há tanta nata deixada à superfície, e toda essa nata embacia as funduras que influenciam o pensamento cheio de densidade. Nós, os superficiais, ficamo-nos pela nata e não podemos entender a complexidade alojada na fundura das coisas. Nosso, o erro de julgamento. Nossa, a intencionalidade de tornar os vira-casacas nos novos Cristos, pois a celeridade em os crucificar assim o subentende. 

Ou então, a tese da complexidade que vagueia sob a nata das coisas, ou é um ardiloso pretexto para desviar as atenções, ou é a confirmação de que ficamos a dever muito à transparência – se a transparência significa o que vem nos dicionários.

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