12.4.23

Trespasse

Black Country, New Road, “Chaos Space Marine”, in https://www.youtube.com/watch?v=Jqy6WPSfZSA

Respiras como um submarino. Escondido. Submerso nas águas dos sonhos sem periscópio. Submerso na água, sem periscópio. Não sentes o sal que te cerca. Não sentes a gramática dos sonhos que irrompem desordenadamente, à medida das esculturas que mitos seráficos compõem nas suas harpas mágicas.

Se houvesse um poema militante, angariavas a sua pertença. Chamavas as estrofes pelo teu nome. Não te assustava o estigma do plágio. Ele há tantas contas que se enturvam pelo plágio e ninguém se lamenta, ninguém contesta a desautoria. 

Se as ondas não tivessem sido embainhadas por um Neptuno sem rosto, dirias que a tempestade se amotinou contra os navios que foram apanhados no vento voraz. Vistos à distância, os navios paquidérmicos parecem pequenos botes, quase a serem engolidos pelas vagas medonhas que desassossegam o mar que é a partícula apassivante das tempestades sem critério. Os dias parecem noites. As noites parecem: pesadelos intermináveis. Que trespassam a carne dos marinheiros sem que eles saibam, exilados no seu sono, sem se importunarem com o sismo interminável que a tempestade causa no navio. Se a indiferença pudesse vir a terra, os marinheiros teriam tanto a ensinar. E tu, submerso, no palco de todas estas tribulações, espetador atento.

A silhueta da cordilheira desmata o intervalo na viagem. O navio sente a força gravitacional da terra. Dir-se-ia que nem precisa de combustível e de comandante para navegar até ao porto. O navio que fende os mares está cansado deles. Ao casco impecável, sem sinal de derruimento, desapetecem as águas salinadas. Os olhos cansados dos marinheiros não são porta-vozes dos dias a fio do navio cercado pelo mar omnipresente. Esses foram dias de esquecimento. Do esquecimento de que é feita a terra firme a que os pés dos marinheiros pedem consolo. A silhueta torna-se mais nítida. Uns lampejos de casario começam a crescer na paisagem. Tanto mar é um lancinante apelo para o seu antídoto. Vir a terra é o antídoto. Tu, continuas aprisionado no teu submarino. Agora, és o seu único tripulante.

Os continentes não se medem pela terra que os compõe – dizes, constantemente, como se essa fosse a tua teoria centrípeta. Medem-se pela água que os separa. Esse é o lugar onde habitam as dissemelhanças. Onde há vastas áreas sem serem povoadas pela identidade de alguém. Quem passa por essas rotas é visitante efémero. São caminhos percorridos para se chegar a um cais demandado. Os luares não são centelhas que arremetem contra a escuridão dos mares atravessados. Deles é o mistério sem paradeiro. 

Tu, penhor da tua imensa fragilidade, estás à mercê do luar. Do luar que te trespassa até seres de ti mesmo uma transparência. E nem o submarino impede a translucidez.

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