5.4.23

O estuque está a ruir e diz-se que a esperança foi hipotecada (ensaio sobre a conjuntura)

Sons of Kemet, “In the Castle of My Skin”, in https://www.youtube.com/watch?v=wmN3vFIukk4

1. Somos uma espécie admirável, refém de inúmeros paradoxos – e talvez essa seja a origem da riqueza antropológica. Fazendo uma redução à identidade nacional, as ambiguidades que nos atiram para estados de alma opostos são parte da idiossincrasia. Quando colocados perante uma encruzilhada, tendemos à polarização: somos acantonados em reações excessivas, como se a moderação tivesse sido despromovida a um lugar ermo. E, no entanto, depressa nos refugiamos no situacionismo de que são feitas as costuras da “normalidade”. É quando abandonamos as reações excessivas.

2. Uma sondagem do ICS/ISCTE confirmou a decadência do PS. Muito embora esteja em empate técnico com o PSD, grande parte dos inquiridos não antevê que o líder deste partido seja alternativa credível. Somados, os dois partidos do (soi-disant) arco da governação representam 60% das intenções de voto. Se se traduzissem numa distribuição de deputados, muito provavelmente os dois partidos representariam mais de dois terços dos deputados da Assembleia da República. Assim é o sistema eleitoral, que privilegia, ao mesmo tempo, a formação de maiorias que não impeçam a governabilidade e a possibilidade de pequenos partidos terem lugar no parlamento. 

3. Há quem esteja perplexo com este estado de coisas. Pedro Norton lamenta, no Público, que a “fábrica de esperança” que é a democracia esteja confrontada com um dilema existencial. O partido do governo perde popularidade (por culpa própria) sem que o maior partido da oposição, a sua alternativa “natural”, capitalize as perdas. É neste situacionismo que fermenta o princípio geral da passividade em que medram muitos cidadãos; somos hospedeiros do situacionismo. Vivemos agarrados ao passado sem percebermos que ele pode ser um estigma que nos impede de ver para além do espartilho. Este critério binário de análise política é limitativo. Até hoje, os partidos do “bloco central” têm sido os principais atores do sistema político. Nada obriga a que esse papel se perenize se os dois maiores partidos estão manifestamente em crise e são eles que confinam com a desesperança.

4. É preciso dar espaço à criatividade como caução da reinvenção do sistema político. Numa nota pessoal, posso cair em contradição com os argumentos precedentes se admitir que me inquieta a eventualidade de os partidos das extremas terem um papel mais relevante, talvez até com lugar no governo. Este é um dos paradoxos que nos consome; não parece ser um paradoxo heurístico, do qual se avive uma centelha em forma de solução. A menos que a reinvenção venha de dentro do sistema, como temos exemplos noutros países.

5. O descontentamento está por todo o lado. Com o fim da geringonça e da lua de mel a três, era de prever que a contestação social tomasse conta da rua. O secretário-geral do PCP, um partido em degenerescência, apanhou o comboio da contestação social e fez das manifestações de rua um eletrocardiograma da sociedade portuguesa. Pelo caminho, protestou contra os institutos de sondagens, que aparentemente congeminam uma conspiração contra o PCP. Só assim entende os fracos resultados do partido em sucessivas sondagens. De acordo com a fina análise do secretário-geral do PCP, isto não quadra com a força gravitacional que provém da contestação social nas ruas. Eis uma lição de oportunismo político e de manipulação. Confundir as vozes de protesto, que por muito berrarem são audíveis de Bragança a Sagres, com o pulsar da sociedade, é excessivo. Depois, há eleições e o PCP anda pelos 5% da sua rua da amargura.

6. Mas o descontentamento não se limita às ruas. Subimos ao palco onde o descontentamento é enredo. Falamos com pessoas e sentimos o descontentamento a queimar as veias. 64% dos inquiridos na sondagem do ICS/ISCTE concordam que o desempenho do governo é mau ou muito mau. O governo esconde-se nas vicissitudes da conjuntura internacional. Ele foi o COVID-19. Agora ele é a guerra na Ucrânia e a espiral inflacionista que amarram as mãos do governo. As coisas vão mal, é reconhecido pelo primeiro-ministro, num acesso de humildade bem estudado. Mas é por causa do mundo, que está em convulsões. E as pessoas, que têm memória curta, merecem que a memória seja avivada. Quando o governo se gabava das proezas da política económica, nem o primeiro-ministro nem o ministro das finanças tiveram a hombridade de admitir que as proezas foram à boleia da conjuntura favorável (crescimento da economia mundial; e ajuda do Banco Central Europeu, que andou a comprar dívida pública e manteve as taxas de juro baixas durante muito tempo). As coisas vão mal, culpa-se o mundo; as coisas andam bem, devemos um elogio ao governo. E quem denuncia a manipulação?

7.  Há mais espaço para a contestação: um artista plástico, Carlos Oliveira, instalou uma escultura, chamada “Manguito”, junto ao Palácio de Belém. O manguito simboliza o descontentamento contra a “desgovernação”. Antes que a Câmara de Lisboa, em mesquinha atitude de respeitinho, tivesse removido a instalação artística, o presidente da república acolheu-a no Palácio de Belém. Não vou pelos meandros da segundas intenções que são o retrato de uma relação esquizofrénica entre o presidente da república e o primeiro-ministro. Prefiro deter-me no simbolismo da obra: aos incompetentes, fazemos um manguito. Um manguito simbólico, mas que – adivinho – se esgotará na efemeridade do gesto. Depois, esquecemo-nos, sitiados na brevidade da memória, e voltamos à “normalidade”. À normalidade que é a nossa prisão.

8. Outra vez as ambiguidades que nos cicatrizam: inventaria-se todo este descontentamento contra o governo e o maior partido da oposição e, todavia, na “hora H”, 60% (ou mais) do eleitorado quer que tudo continue como dantes. Somos estruturalmente hostis à mudança, porque a mudança transporta a incerteza. Preferimos continuar a ser mal governados a abrir uma janela de oportunidade à reinvenção do sistema político. Porque a incerteza nos assusta mais do que a incompetência e o arrastar do estado comatoso a que chegámos. Somos, ao mesmo tempo, reféns e fautores desta ambiguidade. E desperdiçamos a alquimia que está à (nossa) mão de semear.

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