20.4.23

Viveiro

The White Stripes, “Little Acorns”, in https://www.youtube.com/watch?v=3hR37xwe2H0

Que ninguém se amedronte com a escuridão nos túneis onde corre o metropolitano. São lugares à prova de gente, insalubres, inabitáveis. Nem os loucos apoderados, ou os misantropos incorrigíveis, intuem o exílio nesses subterrâneos. A centelha à superfície desaprova a intimação de que ninguém sabe a autoria. Porventura, não há conhecimento desta intimação, são as pessoas que se escondem da fuligem que as cobre quando convivem nas cidades – e a fuligem não é um dano que causamos na atmosfera.

Na praça centrípeta, ao menos o ar parece menos saturado. A praça é ampla, talvez ajude. As pessoas cruzam-se, outras estão sentadas nos bancos, à sombra das árvores, refugiadas do calor que assalta os corpos com um suor indesejado. Ouvem-se idiomas diferentes. Quase não se ouve falar no idioma nativo. Naquele viveiro de diferentes vozes, uma amostra do mundo. Um viveiro cosmopolita que impede a praça centrípeta como imagem de representação da cidade. Aquela praça, no somatório das várias culturas, é o exílio sem ser necessário devolver os descontentes aos subterrâneos. O ar da praça foi arejado pela constelação de diferentes idiomas.

Um estrangeiro pergunta algo a outro estrangeiro sentado no banco contíguo. Trocam uns mapas e uns papeis indecifráveis, um deles anota um rascunho, talvez o mais conhecedor da cidade, aconselhando restaurantes, museus, jardins, outras curiosidades que sobem à toponímia da cidade. Fazem inveja aos habitantes da urbe que por ali matam o tempo: se ao menos pudessem estar em lugares trocados, os habitantes da cidade seriam turistas noutro lugar e repetiam o papel que os forasteiros exercem na sua cidade. Estariam em perda: enquanto forasteiros não podiam estar no posto de observação que agora ocupam, não teriam o desembaraço de inventariar as várias culturas que se caldeiam na praça centrípeta; estariam noutra, desconhecida, praça centrípeta, o olhar inusualmente voltado para um quadrante superior a uma linha reta traçada na horizontal tendo o nariz como casa de partida, a apreciar o povoado em vez dos que o povoam.

Os diferentes lugares estão mais perto. Neste viveiro de tão variegadas culturas que é quotidiano, a cidade transfigura-se noutra identidade. Já não se pode atestar a certidão de casamento entre a cidade e o país que é seu chão. A idiossincrasia dos lugares está a ser contestada pela afeição aos cosmopolitas que a visitam e aos cosmopolitas em que muitos dos seus habitantes se tornaram. Os diferentes lugares estão tão perto que as fronteiras desapareceram do léxico, deixaram de ser os muros que nos separam dos outros. Os muros estão nos corpos dos outros. Eis a nova fronteira.

Agora, os outros tornámo-nos nós. Em vias de sermos um viveiro despojado de bandeiras e de hinos, apenas a consagração da matéria de que somos, humanidade, todos feitos. Sem outros muros a servir de veneno.

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