Os candeeiros da rua trepidavam. Como se um sismo estivesse a acontecer. Era só do vento, que assobiava fúria contra o mobiliário urbano, contra os telhados que já tinham sido despojados de umas quantas telhas, contra os sonos mais leves. Em surdina, uma música que parecia ter afinidades com jazz. Não se sabia a sua origem. A noite sem contemplações avançava, trespassada pelo vento insubmisso. Uns vultos dissolviam o silêncio da noite. Estavam apostados em negar provisão à ideia de que a noite era um lugar ermo.
À sombra de um candeeiro, uma mulher envelhecida debatia-se com a insónia. Rebelara-se contra o dizer comum que as mulheres não saem sozinhas à rua à noite, porque a noite, em seu estado avançado, é um perigoso punhal que se abate contra as mulheres indefesas. A velha estava capaz de jurar que não tinha medo dos meliantes que andam na rua: se eles fogem do dia movimentado, é porque temem a multidão, temem pessoas, e preferem investir contra o património, o indefeso património. Não vão atacar uma velha sem forças, de que não podem levar algo que seja valioso.
Um dos vultos cambaleantes conseguiu apurar o vulto da mulher envelhecida no lado oposto da praça. A curiosidade – que há de ser a sepultura de muitos mortais – levou-o, e aos companheiros de estroinice, a avançar no sentido da mulher. Tão depressa estugaram o passo como o retesaram, quando o rosto da mulher se tornou visível. Por muito que a sua lucidez não estivesse nas melhores noites, assustaram-se com o rosto medonho da velha. O seu olhar era esbugalhado, como se os globos oculares fossem explodir para cima dos arremedos de gente que se abeiraram dela.
Um dos rapazes meteu-se entre a velha e os companheiros e exclamou: “parem! Digo: parem!”, com toda a contundência que o estado alterado permitia. Foi o primeiro a medir o olhar tumultuoso da velha, logo entendido como se pertencesse a uma bruxa. Era um olhar que parecia esvaziar quem nele se debatesse. E como acontece quando um grupo de rapazolas se candidata a praticar umas maldades num animal indefeso e depois recua nas intenções, assustado com a agressividade do animal (a tradução do espírito de sobrevivência), os rapazes ficaram inertes, a um punhado de palmos da velha, que parecia absorta.
Um dos boémios especulou que a velha era uma bruxa e, não fosse lançar um feitiço contra os rapazolas, o mais avisado seria abandonar o lugar e deixar a velha entregue à sua paz. Nos dias que se seguiram, os rapazolas andavam transidos de medo, com o sono aos solavancos, a ideia fixa de que a velha podia ter ateado um feitiço que os deixasse impotentes, ou sem capacidade para articular duas frases seguidas, ou sem apetite para outros prazeres da vida. Apesar de acreditarem em bruxas só quando sobressaltam os outros.
Da velha não voltou a praça a dar notícias e as noites que vieram a seguir foram serenas, o vento quase calado.
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