21.4.23

O fogo posto que fala por mim (short stories #422)

No Words Left, “Immerse Yourself in Love”, in https://www.youtube.com/watch?v=Z7k250BXYfI

          Desobedeço aos espectros. De mim, não se espere rendição. Há um fogo posto que não se extingue. Uma teimosia que não acusa a validade do tempo. Desobedeço aos mecenas que vacinam contra os sobressaltos interiores. Prefiro os sobressaltos interiores a sentir-me domado pelos diligentes embaixadores da obediência. Prefiro pisar uns gramas de precipício, mesmo sabendo-me sem arnês, do que aceitar a benevolência dos mastins que se disfarçam de míticas figuras paternais. Essa benevolência é uma farsa. Não posso calar o vulcão que se ateia a cada dia que passa. Se o deixar em silêncio, se lhe meter um garrote na jugular, passo a outro eu. Desconfio que não estarei para avivar a cal do dia consecutivo. Por isso, deixo abrasear o fogo interior que levita desde o labiríntico arguir das veias e do sangue que as dilata. Este fogo posto é um adiamento intencional, propositado o seu hedonismo. Não é um disfarce do tempo que avança. Posto o fogo de atalaia, a pele não se extingue, o olhar não recusa as latitudes, o pensamento viaja por todo o sistema solar, o corpo não enjeita os apeadeiros que aparecem ao acaso. Ninguém é o eu próprio se for servil à sua circunstância exterior. Deste fogo que me alimento, os dados lançados para o tabuleiro sem regras e as palavras avulsas que se transfiguram em estrofes sindicadas pelo vento tardio. Antes que seja apanhado por uma divindade malsã e, distraidamente, seja vítima dos objetores de consciência dos adiamentos. Somos frágeis, demasiadamente frágeis, para estarmos à mercê dos acasos que se jogam contra nós. Enquanto for o curador do fogo posto que fala por mim, não serei refém do tempo intransigente que joga sal nas feridas que vão sendo percutidas. No pedestal que não se avista, direi ao sol que tem tempo para desacontecer.

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