25.4.23

Espartanos

Valentin Hadjadj, “The Acceptance”, in https://www.youtube.com/watch?v=UFyBgW1ca2w

Não damos aos heterónimos da alma bom conselho. Se eles se exilassem no labirinto que se esconde das luzes, podiam-se manter heterónimos. Talvez se exagere nas revoluções que assanham o sangue contra o coração. Se em vez de angústia colhermos as pétalas cindidas no crepúsculo, seremos vikings, o corpo irredutível sem medo do frio, e metemos as mãos nos remos mesmo sabendo que o mar está em preparos de engolir a nau.

Seremos espartanos. Peritos no domínio do rigor, sem transigir com a apneia que conspira para nos demover do apalavrado. Seria como um ato de minimalismo: o uso sóbrio das palavras, proibindo a jactância que decora o gongórico, proibindo os adjetivos – que as palavras, na sua pureza, são tão encorpadas que perdem a robustez se vierem amaciadas por adjetivos. As paredes de uma alvura extravagante são o convite para reinventarmos as demais cores. É a nos que compete escolher a cor que transfigura o branco. Escolher a forma e o dia do luar. Ou deixar a alvura coroar o minimalismo com que nos entregamos à vida, e esse é o feito que a agiganta, sem desperdício pelas bagatelas que são o seu entulho.

 Desaprovamos os heterónimos. Não queremos saber da multiplicação de personagens que coabitam no mesmo pensamento, que se servem do mesmo corpo para satisfazer desejos diferentes, que colonizam diferentes vocabulários. Não queremos ser reféns de uma ilusão sísmica se a terra não se move. A singularidade da existência não está à altura de todo o tempo que nos é destinado. Não precisamos de perder mais tempo com a desmultiplicação de almas pelos heterónimos que são usura.

Se formos espartanos, há destroços por dentro que exigem inventariação. São corpos inertes que absorvem uma fatia do tempo e emagrecem o tamanho da vida. Se pensarmos em dádivas, somos esse chão válido em que lançamos as sementes meticulosamente escolhidas. Somos nós que damos vida às sementes. Dando corpo a um cifrão sem moeda que se lança como um dado que procura um número a preceito. Ou uma didascália por onde movemos a memória, para não nos perdermos numa nota de rodapé nem ser o nosso nome tomado de assalto pela toponímia.

Não temos medo de ser espartanos. Toda a água que trouxermos ao rosto é um espelho desembaciado com janela aberta para o corpo presente. Somos o promontório de onde colhemos, com vagar, as sílabas demoradas que não deixam ficar para trás nenhuma palavra, que ao túmulo só destinamos umas quantas, proscritas. Somos esse ato de bravura que é colher nos poros da pele todos os gramas que contam para engordar a vida. Sem ter medo de errar. O erro compõe o dicionário espartano.

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