Só escrevia a tinta da china. Não era por ser sinólogo (nem sabia o que era um sinólogo). Essa palavra só lhe fazia lembrar “análogo” ou “enólogo”, e não haveria de vir ao conhecimento, após a imperativa visita ao dicionário, que um sinólogo fosse análogo a um enólogo.
Pela tarde, ouviu dizer que deus foi despejado. Um senhorio neoliberal, daqueles que é praticante inveterado da usura, não tomou em consideração a idade vetusta de deus, nem os outros predicados sobre-humanos que, garantem os crentes, habitam nos limítrofes de deus. (O senhorio, habitual confrade da missa dominical – há que prevenir o inferno – sabe que deus não conhece a usura da vingança.) Com as suas capacidades inestimáveis, deus já falou com o primeiro-ministro. Entende-se, agora, aquela lei de confisco da propriedade privada que o governo ofereceu aos justos. E deus, afinal, podia ser companheiro de armas do sociólogo do Choupal, não fosse dar-se o caso de ser assexuado.
Ao chegar à noite, antes do jantar (restos que andam pelo frigorífico), a caneta de tinta da china tinha de ser reabastecida. Ainda bem que a tinta da china não é fabricada nas refinarias onde o petróleo é transformado nos combustíveis que enfurecem os defensores do ambiente. Ainda bem que a Rússia não produz tinta da china. Não é por acaso que a tinta não se chama tinta da Rússia. Não será a estulta guerra que vai conduzir à míngua de tinta da china, à míngua de literatura (dos atávicos que só escrevem com tinta da china).
À hora do jantar, mesmo antes da sobremesa (o resto de um pudim francês made in Setúbal), soou a campainha. Quando a campainha soa, soa a companhia. Podia ser uma das vizinhas que pedem um punhado de sal, ou meia dúzia de ovos para fazer um pudim francês made in Setúbal, ou coisas tão improváveis como detergente para a máquina de lavar louça, o utensilio para desentupir as sanitas, ou noz moscada, ou assuntos mais prováveis como a satisfação de uns súbitos desejos inconfessáveis (não vá o sacerdote incógnito, na hora da expiação de pecados, sentir-se tentado a mudar para aquele prédio). Era o poeta desengonçado que vinha pedir dinheiro emprestado. Outra vez. Já vinha ébrio, àquela hora (outra vez). Já perdeu a conta. Dele não se diga que foi responsável pelo crédito malparado. Não há estacionamento aprovado para o crédito se arrumar.
Passada a noite, e depois de uma olímpica arenga com a preguiça que foi adiando a saída da cama, hesitou se havia de tomar banho. Estava quase a vociferar interiormente “maldita preguiça”, mas ela não tem culpa de ele ser preguiçoso. Viver sozinho tem destas regalias: as únicas contas que presta são à própria consciência. Como a consciência está em vias de extinção, grande parte dos problemas existenciais nem sequer sobe ao tabuleiro onde as peças se movimentam. A vida tornou-se leve. Um dia destes, ao sorrir depois de constatar a leveza da vida, foi acossado por uma dúvida: a leveza da vida não é paredes-meias com a frivolidade?
Afinal teria de empregar a palavra “maldito” durante a manhã: malditas eram as interrogações que conseguiam espreitar pelo periscópio. Ah!, como ser submarino lhe trazia um conforto interior que andou desaproveitado no tempo pretérito. Prometeu(-se): “durante a manhã ainda vou recitar o poema do dia”. Só tinha de encontrar o poemário e não se esquecer da jura.
Para sua surpresa (está habituado ao olvido militante), não se esqueceu da récita e não demorou a encontrar o poemário. Do poema do dia (Filipa Leal, Padaria, in Fósforos e metal sobre imitação de ser humano, Assírio & Alvim), estas estrofes colheram a sua atenção:
Vou mudar de casa e procurar outra padaria
e nessa altura talvez venha aqui despedir-me de ti
também.
Eu ia, confesso-te, persistir no erro, na casa e na padaria,
mas fui despejada de tudo.
Afinal, não foi só deus que foi despejado.
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