28.4.23

Juros vincendos (short stories #423)

Morphine, “Thursday”, in https://www.youtube.com/watch?v=3xz4umNws0s

          Aquele álbum que haverá de ser publicado. Aquele livro de poemas que continua escondido e não o será enquanto não apetecer. Aquela cidade que anda a ser ajuramentada. Aquele adormecer singular com um céu de estrelas como espelho. Aquele festival de música que parece um sonho. Aquelas paisagens inóspitas que não ficarão desiludidas com a nossa visita. Aquele adiamento impossível. Aquele desassombro de bondade que a teimosia, ou a austeridade interior – ou apenas a rotina com os seus embaraços –, impede. Aquela ideia órfã que será ensaiada. Aquele autor maldito. Aquela viagem a um lugar não remoto e todavia invisitado.  Aquela empreitada que desafia os preconceitos enraizados. Aqueles preconceitos que estão em vias de não o ser. Aquela tatuagem interior a que a boca nega provimento. Aquele grito no meio da multidão, sem temor de ser olhado como louco. Aquele ensejo para virar tudo do avesso, só para ver as suas costuras e depois decidir o que continua do avesso e o que é devolvido à sua forma primitiva. Aquela indiferença sobre o mosto que apodrece à nossa volta. Aquele crepúsculo que parece atravessar o tempo inteiro, desfeito em estilhaços. Aquela trova que se diminui na sua humildade. Aquele desembaraço que esbarra no medo e como o medo perde a sua ossatura. Aquele feitio atabalhoado reduzido à amabilidade. Aquele empossar da lucidez, contra as distrações que povoam o horizonte com o desfuturo. Aquela voz que não se arrasta numa dilação. Aquele sonho enfim esconjurado. Aquele corpo que não se esconde. Aquele olhar desimpedido que não se amedronta com falésias. Aquele porvir que há de estar à distância de um braço. Aquele predispor que se enlaça com o passado, à procura de um lugar de pertença. Aquela paga de uma jura indelével (não usarás relógio). Aquele tempo a destempo, ou um tempo sem medida para o ser. 

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