Desfaçam-se os zeros que dissolvem o futuro. São precisas todas as absolvições que a carne pode amadurecer. Todos os nasceres do sol que os sonhos congeminam, a jeito de o dia ser terapêutico. Nas balanças, sopesem-se os sobressaltos espúrios, as angústias descontratadas, os processos de intenção que atravessam um ermo lugar, a tremenda mania de sermos maiores do que a nossa silhueta.
Tomamos o lugar de um fiorde, o vento frio que trespassa a pele e magoa a carne; e, todavia, o lugar antípoda oferece-se, demiúrgico, como o segredo que confia a fonte criadora. Tudo se recompõe, nas artes à prova de inventário, em sucessivas convulsões que animam o sangue arrefecido. Não são lugares devastados que desfilam no estirador onde se reinventam. Não são rios desesperançados que correm vagarosamente para a foz, malparados no estuário que amplia o pôr-do-sol e disfarça a sua putrefação.
Se a manhã não intimidasse, seríamos eloquentes como somos ao nascer. Não podemos desaproveitar a bondade do tempo. Não podemos ser passivos perante os legados que tutelamos. Por mais que a vida seja um esgrima contínuo e as feridas se acumulem numa demanda de cicatrizes, há o demais – o avivar da luz que se abate em pinceladas que assentam na pele, as estrofes que se aninham contra o mau uso do idioma, uma derradeira centelha que afinal é apenas mais uma, e de véspera, antes que outra venha e seja, também ela, a véspera de um acontecimento qualquer, e o dever de continuar a falar em vésperas sem escrutínio. Não somos demissionários do devir. Não somos autores, por capitulação, do destrate do tempo que se faz ávido nas mãos suadas. Somos rostos e braços e torso e pernas e pensamento e sexo e alma, inteira ou por frações, e por junto não devemos nada ao passado. Não interessa a contabilidade mesquinha com zeros a sucederem-se no horizonte. Não contamos as ninharias que tomam de assalto a atenção, a elas dedicamos a mais sincera desatenção – a melhor homenagem que lhes pode ser tributada. Antes que de nós sobrem as cinzas crepusculares, uma distante desmemória do esquecimento que passamos a ser. Pois que à morte, deixamos de ser.
Na aritmética da vida, deixamos de contar com os zeros. A contagem começa no um.
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