26.4.23

Dente de tubarão

Pet Shop Boys, “The Lost Room”, in https://www.youtube.com/watch?v=eBCq0pzr8io

Para que servem as efemérides?, perguntou a filha ao pai e este, admirado com os avanços no vocabulário, respondeu com uma pergunta, intuindo a resposta da filha: onde aprendeste essa palavra, efeméride?, logo seguida da resposta canónica da filha: na escola, onde podia ter sido? Podiam continuar neste jogo de perguntas seguidas de resposta em forma de pergunta e assim sucessivamente, mas o pai pegou no fio à meada e voltou à pergunta de partida: servem para celebrar coisas que aconteceram e que são importantes para a História do país, servem para nos lembrarmos que somos uma comunidade.

A filha, naquele dia especialmente inquisitiva, perguntou quem define o que deve ser celebrado como efeméride, ao que o pai respondeu, sem grande convicção, somos todos nós, a comunidade. E a rapariga, não satisfeita com a indeterminação do conceito, não deixou o pai em sossego, atirando outra pergunta: e se houver pessoas que não querem festejar, ficam isoladas a um canto, os outros que pertencem à comunidade apontam-lhes o dedo? Não pertencem à comunidade? E o pai, atrapalhado com o método filosófico a desoras, procurou desconversar e perguntou (foi a sua vez de perguntar) a que horas chegava a amiga que a filha tinha convidado para o almoço.

A manobra de diversão não teve sorte. A rapariga voltou à mesma pergunta: e se houver pessoas que não querem festejar, ficam isoladas a um canto, os outros apontam-lhes o dedo? Antes que o pai pressentisse a resposta, ela acossou-o: desta vez não fujas à pergunta – parecendo uma intimação do algoz à sua vítima, o interrogado. 

O pai deteve-se na dúvida, que se cobriu de silêncio. A rapariga percebeu que a pergunta não tinha uma resposta fácil. O pai podia encenar outra manobra de diversão, elogiando a rapariga por ter a sagacidade (ela teria de ir ao dicionário ver o que significa sagacidade?) de saber formular perguntas e que era isso, mais do que procurar respostas, que importava, mas não foi nessa direção. Hesitante, tartamudeou que a beleza está em termos direito a não concordar com o que não queremos concordar, sem que os outros, os que até estejam em maioria, nos possam acusar de sermos dissidentes. A rapariga, em acesso de rebeldia não esquartejada, lembrou-se daquelas ocasiões em que o pai a contrariava, mas percebeu que não era disso que o pai falava. 

O pai quis juntar outra frase, para ser mais convincente: a escolha pela diferença não é perseguida, pois se fosse era como se os poderosos lançassem um dente de tubarão sobre os dissidentes. Deixaria de haver dissidentes. E seríamos todos parecidos de mais, o que contraria a noção de comunidade. Voltando à casa da partida, concluiu que as efemérides valem cada vez menos, ela que não preocupasse em festejá-las (a não ser porque nesses dias não vai à escola). 

Em silêncio sobre si mesmo, percebeu que o cimento da sociedade está cada vez mais gasto e tende a estilhaçar-se. Mas esse mau legado, o espectro das nuvens sombrias que colonizam o futuro, e sendo o futuro o lugar a que pertence a filha, não o queria a assombrá-la. Às vezes, o silêncio é reparador e não é preciso agitar fantasmas que vão crescer no seu tempo errado.

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