6.4.23

A dança dança-se com os olhos

Madrugada, “The World Could Be Falling Down”, in https://www.youtube.com/watch?v=fE7atpl_yCc

Os estudos estudam o que às vezes não precisa de ser estudado. É recorrente, na natureza humana, a precisão com que acertamos ao lado: a palavra a despropósito, um gesto que devia ter ficado guardado, uma decisão que não devia ter saído do estirador da indecisão, o mundo que devia ter amanhecido só na madrugada seguinte. Ou a dança que se ensaia, sabendo que se é desajeitado e que dois são os pés esquerdos.

Mas depois dizem: ninguém pode colidir com as fragilidades pessoais. Que a ninguém seja permitido gracejar a propósito do desajeitado estado da dança que se ensaia. (A menos que julguemos que, desse modo, se restringe a liberdade de expressão dos outros, no exercício da sua legítima crítica.) Os dançarinos sem dotes saltam para a pista de dança e é todo um desgraçado arraial de inestética que ocupa o espaço, os gestos desengonçados a poluírem a visibilidade limítrofe. Os outros, riem-se. Ou ficam tão atónitos que o seu queixo cai do sítio. 

Intimidados, os dançarinos gorados guardam para si o desejo de abanar as ancas em palco público. Poderão fazê-lo escondidos do resto do mundo, para não se submeterem ao tribunal marcial da opinião que se rege por apertados padrões de estética. Não se fala de dançarinos que fazem da dança profissão, ou de juízes que são peritos na arte. Fala-se do senso comum que avalia os dotes (ou a falta deles) quando alguém dança com o corpo inteiro. Os dançarinos fracassados refugiam-se num exílio interior. Têm pudor, prevenindo as impiedosas manifestações de desprezo, ou apenas a ironia sobre a sua desarte dançante. Poupam uns quantos ao ultraje da estética e uns outros a serem confrontados com a risibilidade das suas danças.

E há os que apenas não contemplam a hipótese de dançar. Os dois pés esquerdos são a impossibilidade que se manifesta, a caução para a recusa da dança. Ou, a coberto do desajeito que os consome, nunca chegam a cultivar o prazer da dança. Limitam-se a dançar com os olhos, enquanto os dedos percutem numa superfície de amparo e acompanham a música. Dançam com os olhos. Ou, no máximo, com os dedos que percutem na superfície de amparo, às escondidas de qualquer observador diligente.

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