29.9.23

3+1

Cowboy Junkies, “Sweet Jane” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=6FuyBXH2IFw

Discutia-se a variância do choro, sem se saber de onde provinham as lágrimas. Podiam ser manifestações de emoções capilares, num processo químico por patentear. Podiam ser exibições de autocomiseração, que os há a desfilarem pungência só para serem alvos da piedade dos outros. Podia ser de cortar cebolas belicosas. Podia ser só um slogan para cativar poemas singulares.

Ou do sono: as pessoas dormem sonos diferentes e os seus sonhos são tão variáveis que só para os inventariar era preciso um computador com memória de elefante. Alguém teve uma ideia peregrina: e se os sonhos fossem inventariados e o tempo a eles correspondente fosse creditado a quem se oferecesse para os moderar? As pessoas podiam viver para além dos cem anos. 

Não tardou a oposição à ideia: puxaram da espada argumentativa para fazerem saber que o tempo da vida que se leva é a conta certa. Ainda iam a dizer, em surdina, que até é tempo excessivo, mas não queriam ser acusados de misantropia existencial. Somaram um princípio metódico de reserva da privacidade: mostrar os sonhos em público era caucionar o anátema da invasão da privacidade, como se não fossem de sobra os atentados que são sobre ela cometidos. Outros se juntaram à oposição, não por temerem uma extensão da vida que prolongasse o sofrimento que ela representa, mas porque arguiam que os sonhos são insondáveis. Muito provavelmente, teríamos uma mistificação onírica com base numa imensa paleta de mentiras de todos aqueles que fossem participar os sonhos sem saberem ao certo o que tinham sonhado. 

A ideia peregrina estava presa a um excesso de voluntarismo dos seus pais fundadores. Quando o voluntarismo peca por excesso, a ingenuidade é o ramal por onde as consequências confluem. As intenções não eram más. Quem (descontando os niilistas inveterados a quem dói a vida que têm) não gostaria de prolongar a existência para além dos cem anos? Alguns estariam preparados para pagar o ónus da revelação dos seus sonhos. Para os que têm na vida um festim, era um custo necessário. Assim como assim, podiam sempre mentir sobre os sonhos sujeitos a inventário. Ainda ninguém descobriu um método diferente para escrutinar os sonhos que habitam os sonos das pessoas. Outros, porém, não estariam dispostos à transação. Os seus sonhos são diamantes em bruto que não se trocam por nenhuma garantia de extensão da vida. Temiam que ganhassem em lágrimas o que perdiam da reserva dos sonhos.

28.9.23

Bem-vindos ao fascismo invertido

Idles, “Well Done” (live at Yala! Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=F55r3leCI5c 

“Há pessoas que nunca se perdem porque nunca se põem a caminho.” 

Johann Goethe

A título de exórdio: não imagina o leitor como vai ser custoso escrever este texto, por aparentar ser uma defesa da direita radical (ou extrema-direita, ou neofascistas – fica ao critério do leitor o apodo adequado ao Chega). Se fosse preciso começar por uma declaração de interesses, teria de informar o leitor eventualmente desatento, ou o leitor com dificuldades hermenêuticas, ou o leitor motivado (por conveniências que só ele poderá explicar) a ler neste texto uma colagem à direita radical, que considero soez a direita populista, radical e extremada e concordo que os partidos de centro-direita ergam cordões sanitários que coloca a extrema-direita fora das cogitações de governo.

Não seria preciso esta declaração de interesses. À cautela, fica em jeito de prefácio, escrita com todas as letras (como se estivesse a soletrar pausadamente todas as vírgulas, fosse dito oralmente): a extrema-direita do Ventura é uma tumefação que deve ser enjeitada em coligações governamentais.

Ouvi na rádio um comentário da autarca de Almada que me pôs a pensar se a diligência em combater os neofascistas não faz medrar fascistas do avesso (e não alimenta neofascistas emergentes). O assunto está na ordem do dia, aqui e por todo o lado onde o estigma da direita radical assusta muita gente. Devo dizer: a extrema-direita assusta-me por razões diferentes das que são brandidas por quem entra numa deriva existencial se não esbracejar constantemente o fantasma do fascismo. Inês Medeiros afirmou que só devem ficar de fora de coligações de governo partidos que ofendem a Constituição. Não o disse, mas entendeu-se: o Chega é, para a edil de Almada, o único partido político com lugar no parlamento que não respeita a Constituição e apresenta propostas que reprovariam no crivo do Tribunal Constitucional se fossem aprovadas como lei.

Entendo o raciocínio. Há que prevenir (e, se forem precisas medidas mais radicais, impedir) os neofascistas de irem para o governo, na medida da sua ostensiva ofensa aos valores constitucionais. O Chega é encostado à posição de partido pária. Mas é um partido pária que ocupa uma posição paradoxal. Por um lado, foi legalmente constituído e conseguiu eleger um grupo parlamentar que não se pode deslegitimar. É um partido do regime. De outro modo, não teria nascido, impedida a sua criação pelo Tribunal Constitucional. Por outro lado, temos vultos da intelectualidade e pessoas com responsabilidades políticas que encostam o partido da direita radical às cordas, considerando-o ilegítimo para participar em acordos de governo. 

Esta é uma dissonância que deve ser participada. Ou se ilegaliza o Chega, impedindo-o de ir a eleições, com os danos esperados para as credenciais democráticas de quem o propuser e assim julgar; ou, sendo um partido do regime, concorrendo a eleições e elegendo um número de deputados representativo de uma percentagem da população que não pode ser desprezada, não pode ser constitucionalmente banido, e com a devida antecedência, de possíveis fórmulas governativas. 

Um partido (seja qual for, desde que seja legal) que concorre a eleições não pode ser impedido de participar numa solução de governo. É contra a lógica da Constituição, contra a filosofia dos atos eleitorais e encerra um acantonar dos eleitores desse partido que pode atear uma conflitualidade que não é salutar para a democracia. Ao mesmo tempo, o cerco à direita radical é um bálsamo a seu favor. O partido vitimiza-se, atraindo muitos eleitores que se solidarizam com o partido vitimizado. Se o Chega é o seguro de vida dos socialistas, há alguns socialistas que retribuem a amabilidade com medidas de efeito equivalente. Se não fosse dramático, seria de um cinismo aterrador.

Se querem impedir que o Chega chegue ao governo, tenham a coragem de o ilegalizar. Só então, segundo a doutrina Medeiros (que é a doutrina de muitos pensadores da esquerda para a sua esquerda), é que tudo fica na paz interior de saber que os neofascistas estão afastados do governo. Podem ir a eleições, mas estão proibidos de ir para o governo. Como não se desconfia que os partidos de esquerda coloquem a hipótese de se coligarem com a extrema-direita, deixem os cordões sanitários para a direita moderada. Não sejam procuradores do centro-direita.

Estou consciente que muitos recusam a teoria da equivalência entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Não admitem essa equivalência, para avivar a repugnância em relação à extrema-direita – até porque os neofascistas sentem saudades de Salazar. Carrega-se a tecla do desprezo pelos valores constitucionais para estabelecer a diferença que impede a equivalência entre os extremos. As esquerdas reveem-se na Constituição e são ativistas na sua defesa. É esta a diferença que impede a equivalência entre a extrema-direita e qualquer esquerda que seja, por gente mais cínica e profundamente mal-intencionada, etiquetada como extrema-esquerda.

As circunstâncias histórias colocam a extrema-esquerda do “lado certo” da História e a extrema-direita do seu “lado errado”. Os que são condescendentes com os partidos de extrema-esquerda usam a contingência histórica para ilibar sobretudo o PCP e condenar o Chega ao ostracismo. Contudo, a análise deve transcender o foro da História: se é certo que o PCP foi militantemente ativo no combate à ditadura salazarista (vá lá: ao fascismo, para os que tanto banalizam o fascismo não se assanharem), o modelo sociopolítico que o PCP defendeu e ainda defende, com notórias saudades da defunta União Soviética, não pode cair em saco roto. A defesa desse modelo encerra, no plano dos princípios políticos fundamentais, uma clara violação da Constituição. Os que abjuram a extrema-direita por não se rever na Constituição não aceitam, por miopia história (ironia do destino) ou por conveniência arbitrária, colocar a extrema-direita e a extrema-esquerda no mesmo plano. 

Se calhar, podemos falar de fascismo invertido (já que se banalizou o fascismo).

27.9.23

(Não) ficas para semente

Explosions in the Sky, “Loved Ones”, ion https://www.youtube.com/watch?v=ogFLy72Ox4k

Não importa ter o arnês cingido ao corpo: quando for o ocaso apalavrado no dicionário dos deuses, o corpo estilhaça-se e não fica memória que se acautele. Podem os líricos espaventar o fantasma da morte, podem desencolerizar o momento com uma toada poética que remete para a alma, que fica, imorredoira, a sentenciar as memórias dos que já tiveram sepultura. Nada se opõe à finitude, ao derradeiro sono de que não há sonhos inventariados.

Se às cores te agarrares, poderás adiar o que será inadiável num futuro qualquer. Por mais que te angustie a ideia, não ficas para semente. Mesmo que os líricos se esforcem em acerar as ilusões, a decadência não se limita ao corpo. O corpo deixa de funcionar, as pessoas que te são queridas (as outras não importam) continuam a albergar-te na memória durante algum tempo. Não serás uma representação imorredoira, como entoam os procuradores da teoria que mantém a existência de vida para além da morte. Não te dês tanta importância. Depois de atestada a tua finitude, não querias sobressaltar aqueles a que queres impor o prolongamento das memórias além da tua existência física. Se te são queridas, não merecem que as exorcizes dessa forma. 

Não há registo do que é ser a morte quando marca vez no calendário. Que esta hipótese seja levada à consideração: é um sono, um sono do qual não se volta a acordar, um sono sem a presença de sonhos (ou, se é que serve de compensação, de pesadelos). Um sono, só. Ao contrário da vida, um sono perene. Não podemos regressar da finitude a que fomos condenados. Se alguém aspira a uma condição perene, tem-na no sono derradeiro, do qual não volta a sentir o desprazer da aurora que o retirava da letargia do sono.

Não te importes se te desmentirem a profecia autorrealizável em que teimaste. Dir-te-ão, em abono dos teus desenganos, que não serás semente vindoura. Não te importes, pois se, por um milagre onírico, as leis da vida fossem desmentidas e ficasses para semente, não era grande coisa que legavas para o mundo vindouro. Ao menos que saibas: o lugar desaconselhado a que te julgas encomendado também não se conjuga com a perenidade.

26.9.23

A inteligência artificial é uma vingança dos que não são criativos

The Chemical Brothers ft. Beck, “Skipping Like a Stone”, in https://www.youtube.com/watch?v=nRtxogXp8sY

A besta emancipou-se e sobrepõe-se aos criadores. É o retrato medonho de uma distopia narrada em filmes de ficção científica. Não interessa se houve intencionalidade dos criadores. Se terão antecipado a probabilidade de a besta cortar as amarrações e só fazer o que quer, sem escrutínio dos criadores ou (vá lá) de uma entidade destinada a sindicar a atividade prolífica da besta.

Agora, a besta tem milhentos tentáculos. Sabe de tudo, opina sobre tudo, responde sem exceções, cria. Cria a uma velocidade que os criadores de artes não conseguem acompanhar (nem em utopias dedilhadas nos melhores sonhos). Há livros feitos pela besta. Música composta pela besta. Ela resolve complicados problemas matemáticos. Consegue esboçar obras de arte, da pintura à estatutária. Mas não consegue o milagre de curar doenças incuráveis, nem acautelar a possibilidade da imortalidade (para os que lamentem como superior perda o seu abandono do mundo dos vivos). E não consegue aconselhar os políticos medíocres a “desenharem” (maldito estigma da tradição literal que faz o seu caminho com amplitude) políticas que consigam efeitos bondosos. Suprema heresia: a besta até consegue fazer poemas.

Os artistas e os que dependem da propriedade intelectual estão em pânico. Temem a concorrência, por mais que seja uma concorrência distorcida: uma pessoa não pode competir com uma máquina tentacular, qual hidra de milhões de cabeças que tudo consegue abarcar. Protesta-se contra a inteligência artificial: protestam os autores, que se distinguem pela sublime criatividade que emprestam às suas manifestações artísticas; protestam os que são sensíveis à humanização das artes, repudiando a sua colonização por máquinas que não têm o menor vínculo a gente-gente. Alguns, em silêncio, são cúmplices por causa do silêncio. Outros, os habituais fazedores do futuro, os que se apaixonam desbragadamente pelas virtudes do avanço tecnológico, perguntam: não há inconveniente que as artes também estejam ao alcance de máquinas sofisticadas.

Os botas de elástico rejeitam a banalização das artes. O ato de criação humana vulgariza-se no sopé de uma besta maquinal que maximiza as suas capacidades para expor as fragilidades dos humanos. Mas a arte, em todas as suas possíveis manifestações, é a maximização do humano. É perpassada pelo sangue e pelo suor dos criadores, trespassada pela cultura que se embebe na mais profunda ossatura. As máquinas não reproduzem estes elementos. Se vierem a fazer arte, que seja catalogada numa subespécie de arte (com a admissão da bondade da hipótese) que a distinga da arte feita por pessoas.

Evitar a transumância da inteligência artificial serve para que os que nunca foram gente no restrito mercado das artes não venham a ter um lugar, fazendo da besta a interposta entidade que por eles faz criação artística. Dando um golpe de misericórdia nas artes, atiradas para o precipício da desumanização. Ou para que paire a desconfiança de que foram os sem veia criativa que se vingaram do ato da criatividade  na sua única posse, que foi terem criado a besta.

25.9.23

Calar o silêncio

Nick Cave & Warren Ellis, “White Elephant”, in https://www.youtube.com/watch?v=aSxZ1KWFSM4

As pessoas diziam que o silêncio mordia na carótida, como se um lobisomem se locupletasse das palavras, que assim ficaram por dizer (assim por dizer). Não se sabia se as pessoas sabiam o que diziam. O silêncio é poético, de acordo com os poetas e alguns misantropos. Então se estiverem por perto espanhóis... 

(Há uma teoria, ainda sem direito a marca registada, que admite a propensão para os espanhóis falarem mais alto por terem problemas auditivos – só falam alto porque ouvem mal: melhor simplicidade ontológica não se configura. Se ganhasse foros de ciência, ficaria provado o impensável: uma marca genética ligada a uma determinada nacionalidade. Ponham-se de molho as barbas da teoria. Uma hipótese, dada à lhaneza e à probabilidade que se senta na estatística, ensaia a resposta: os espanhóis levantam os decibéis da fala porque são foliões; e certificam-se que nada do que dizem fica à margem de quem os ouve.)

Entre os cidadãos, uma corrente distinguiu-se pelo ativismo contra o silêncio. Em sua defesa, uma prédica: o silêncio acentua o ensimesmar das pessoas, nega-lhes a natureza social; o silêncio é ensurdecedor, porque enche o pensamento de devaneios sem catadura e especulações que não ganham lugar nos compêndios da filosofia. Estes cidadãos levaram uma petição ao parlamento. Queriam uma lei para calar o silêncio. Temiam que o silêncio colonizasse as palavras e, num devastador golpe antropológico, acordássemos condenados à mudez. Não o disseram com todas as palavras, mas queriam que intuíssemos que o silêncio é a mordaça moderna que espalha a censura por dentro das democracias. Só faltou aduzir o fascismo. 

(O tão banalizado fascismo, o mau da fita convencionado, ao ponto de haver tanto fascismo, ou o fantasma omnipresente do fascismo, que o fascismo – o autêntico, o que merece reflexão da ciência e tem entrada própria nas enciclopédias – se esgota no solipsismo dos que o brandem constantemente.)

A corrente ganhou maré e todos os dias se inventariavam novos seguidores. Havia cada vez mais gente a admitir que o silêncio doía. A coutada do silêncio devia estar delimitada por lei, como se houvesse uma zona demarcada do silêncio entre a meia-noite e as sete horas (fins de semana descontados, que os cidadãos não escondem a sua propensão para o hedonismo.) Era preciso dizer, com a voz espanholamente audível, que o silêncio tinha de ser calado, para não ser o calado da palavra a naufragar na ditadura do silêncio. 

22.9.23

Mão pesada

Conferência Inferno, “Fantasias”, in https://www.youtube.com/watch?v=iTxqqqkNKa4

Castiga a inverdade com o exílio forçado, a denegação de estatutos, até a suspensão de direitos, se preciso for. Apura as provas que vierem a regaço, acolhe-as na tua alçada para as sopesares com critério. Não sejas precipitado no chapéu da justiça: a precipitação pode deixar fugir, sob a tutela da tua sindicância, provas fulgurantes que se jogam em sentido contrário. Sabes que das piores injustiças é promover uma justiça castrada, sem critério, sem tomar como aval todas as circunstâncias que merecem ser cuidadas.

Se ao cabo da indagação as provas jogarem a favor da confirmação da mentira, não sejas expedito na punição. As mentiras fermentam a diferentes graus. Há mentiras irremediáveis. Mentiras ostensivas. Mentiras patológicas. Mentiras piedosas. Mentiras-mentira. Mentiras por omissão. Mentiras assassinas. Mentiras-quase e mentiras-totalidade. Mentiras apocalípticas. Tens de saber medir a intensidade da mentira. Saberás aferir as consequências de ter sido cometida. Não podes aplicar a mesma punição se não cuidares de apurar a que temperatura ferve a mentira. Não fiques refém de uma justiça sem paradeiro se te apressares a lançar o anátema da mão pesada. A mão pesada que adverte uma mentira pode ser pior do que a mentira censurada.

Antes que sejas atraiçoado pela precipitação e te arrependas numa memória futura, emoldura a mentira na pessoa e na sua circunstância. Gradua a mentira, coloca-a ao abrigo de uma das várias medidas. Não sejas intérprete de um viés, para não ficares aprisionado ao diadema de punir por excesso ou punir por defeito. Tal como a mentira tem contexto e vítimas, a sua punição, seja severa ou indulgente, pode não quadrar com a mentira sujeita a punição. A mão pesada é desaconselhada. Há um húmus de emotividade que se contagia quando quem julga uma mentira toma as dores da sua vítima. A solidariedade dos desvalidos é uma bomba-relógio. Pode deflagrar sobre todos, culpados e inocentes de uma mentira, tomando todos pela mesma, e injusta, medida.

A mão pesada não tem remédio. Uma vez executada, as cicatrizes são perenes. É quando a perpetuidade da mão pesada excede a medida da mentira que se quer compensar que o tabuleiro é virado do avesso. Em vez de justiça, justicialismo barato, a mentira da justiça e uma justiça mentirosa.

21.9.23

As fronteiras por dentro

Cousteau, “She Don’t Hear Your Prayer”, in https://www.youtube.com/watch?v=ItnWTREnP8o

Cortava a eito as palavras do medo. Há por dentro uma clepsidra que lateja incessantemente, contando os segundos, irregulares. O sangue bombeado sem critério não irriga o pensamento e os lapsos superam a gravidade de uma simples distração. A cadeia alimentar não está de atalaia: quem vier será caçador meritório, que a carne distraída fica à mercê de ser presa fácil. 

Diziam: “foi para isto que ergueste fronteiras interiores?” Estava apalavrado o código de conduta dos gregários. Não era pelo sedentarismo que o copo de virtudes se enchia. A misantropia não era bem recebida – ouvir que era “bicho do mato” era um mal menor, nem todos sabiam do significado de ser misantropo. As fronteiras por dentro tinham essa serventia: delimitavam os muros que não transigem intrusões. Contra a ameaça existencial que descendia do exterior, a pusilanimidade das fronteiras por dentro.

“Estou em contramaré”, admitia, sem levar a sério a acusação que pendia dos que não perdoavam ter levantado fronteiras interiores. Se não fosse pela arbitrariedade dos síndicos, era capaz de tolerar um módico de convivência. Ouvia, outra vez, a recomendação do estatuto gregário como fator de pertença – de como a integração era exigência irrecusável. Continuava a não dar parte fraca (assim considerada, a parte fraca). Os aljubeiros andam escondidos, disfarçam-se de gente solene, adriçando hinos e lemas que servem de salvo-conduto para quem a eles adere. Não era o caso. Não se dera o fenómeno da integração com os outros, que dissolve as fronteiras a uma atávica reminiscência. 

As fronteiras por dentro eram um passaporte para uso próprio. Fazia coro com Sartre: “o inferno são os outros”. Discordava da formulação, por sentir a necessidade de somar uma vírgula, ali omissa: “os outros, são o inferno”. A vírgula era a pauta de um solilóquio. A oração estava separada em duas partes por ação da vírgula hermenêutica. Os outros estavam à parte do inferno. Deixariam de ser os povoadores do inferno? Talvez Sartre estivesse errado. Ainda não há provas que o inferno seja um lugar destilado de almas.

Se for provado que o inferno não é o inferno como aprendemos desde tenra idade, os outros são a melhor companhia que se pode ter. Desmentindo Sarte e denunciando a permanência de fronteiras por dentro.

20.9.23

Errância

Massive Attack, “Angel” (live at Glastonbury 2008), in https://www.youtube.com/watch?v=VKMsEXOie3A

É por este veio que o veneno não entra. Para não ser um peão à mercê de generais avulsos, aciona os torreões que filtram as invasões de território. Uma delimitação teimosa paira sobre a covardia. A errância é o critério preferível.

Se for preciso, as sílabas hasteiam-se no seu vagar, propositadamente, para nenhuma ficar para trás. Não vão os condecorados disfarçar o entendimento atrás de duas ou três sílabas que ficaram pela metade, costurando pretextos para a invasão, a coberto de fingirem que o consentimento foi dado. As sílabas metodicamente dardejadas previnem contra o veneno assestado pelos mercenários a soldo da mesquinhez dos que angariam vidas outras.

 Enquanto for errância, o paradeiro é incógnito. Não se lobriga o estatuto do sangue insubmisso, os limões arrancados das árvores vertendo um rasto de acidez que trava os agiotas das almas. Enquanto for errância, não há radares que se sobreponham. Serão fundamentadas as hesitações, prováveis as improbabilidades, desacertados os relógios que procuram um estalão legítimo. De mão dada com a errância, a boca vertida no idioma por inaugurar, todo feito de estrofes cinzeladas com a cor do céu vivo. À espera que o pântano das desintenções seja desabitado.

 Em vez das sombras tumulares que se abatem sobre a rotina, os pés arregaçam as mangas da errância e crescem com ela. Os amotinados entregam-se aos caminhos avulsos que recusam critérios que os validem. São ruas ao acaso, baldios atravessados como se fosse atrás do contrabando da alma, o mar onde desaguam as preces sem deuses dedicados. A errância é a única matéria escrupulosa. 

Enquanto for errante, não será um satélite obrigado a gravitar na órbita de um corpo centrípeto, um corpo todavia estranho. Foge dos rostos seráficos que o sitiam, devolvendo-os à procedência. E diz-lhes, em sussurro, enquanto contempla a sua capitulação, que não se curva perante a indigência proclamada pelos que estão de atalaia aos outros, desformoseando o inventário havido em talhadas retiradas do passado, ao acaso.

19.9.23

O Outono esconjura o Verão

Bonobo ft. Rhye, “Break Apart”, in https://www.youtube.com/watch?v=k6zGKCSgVwE

Na casa da frente, o estendal ganhou proporções elefantíacas: são estendais amovíveis, uns atrás dos outros, e toda a roupa de Inverno (ou grande parte dela) a secar ao sol, depois de ter ido a banhos à lavandaria. 

Mergulho nas memórias da infância. As pessoas estavam habituadas a tirar dos armários a roupa da estação que estava quase a ser inaugurada. Para exorcizar a longa hibernação da estação anterior, e libertar o guarda-fatos das algemas do mofo, ora o submetiam a uma temporada na máquina de lavar (ou, antes disso, nos tanques onde se lavava a roupa), ora se limitavam a arejá-lo durante uns dias para os ácaros serem repreendidos pelo ar puro. 

(Na altura o ar era puro, se for usado o hoje como medida para a comparação. Ensina a ciência credível e convincente.)

Não sei nada dos costumes sociais, ou dos parâmetros higiénicos que, quero acreditar, passaram pelo crivo da ciência. Não perguntei a conhecedores se ainda existe o uso social e se se justifica aos olhos da ciência (ou se é apenas a craveira do “saber popular”). Se o olhar viajasse pelas imediações, só naquela casa as roupas eram defumadas dos maus espíritos do Verão. Pode ser que a trivialidade não esteja calendarizada com rigor e que, naquele dia, só os vizinhos da casa da frente aproveitaram o fim de semana para o ato protocolar da defumação da roupa que vem a seguir.

Não sei nada disso. Mas a observação, e a evocação da infância, faz pensar se o protocolo da higienização das roupas invernais para memória futura não está carregado de simbolismo. É o Verão, quase a ceder o lugar ao Outono, por sua vez a prefaciar o Inverno (para os espíritos insatisfeitos: o Inverno é sempre tardio), que exige a renovação do vestuário que vai entrar a serviço mal o primeiro frio e as chuvas inaugurais se façam notar. Este vestuário, amarfanhado nas catacumbas para não se intimidar com as temperaturas impróprias do Verão, precisa de respirar antes de ser respirado pelos poros dos usuários. 

O Outono toma o lugar do Verão e as roupas que se esconderam da estação estival precisam de reaprender o ar e o sol e a escuridão quando a noite toma conta de tudo. É o Outono que precisa de esconjurar o Verão, tanto o exsudar que tudo contaminou. O Outono não quer assinar as mesmas páginas do Verão. Por isso é que há calendários e os costumes estabelecem que as estações são diferentes umas das outras. E as roupas também. Que precisam de respirar, antes de serem respiradas.

18.9.23

A mão trémula

Lankum, “Go Dig My Grave”, in https://www.youtube.com/watch?v=qhqpQiXnFx0

Dantes, a mão dedilhava cordas de guitarra, às vezes cordas de violino. A mão apressava o sangue que irradiava pelo meio das veredas que escondiam a pureza da vontade. Dantes, a mão não era trémula. Tudo parecia correr em transgressão, como se a própria transgressão estivesse dissolvida no amparo da reinvenção dos termos: como transgressão empossada, deixava de ser válida a lei transgredida. E a transgressão, esvaída, perdia pergaminhos.

A mão não era trémula, dantes; tinha por dentro da carne a força de um vulcão. Nunca dormia, mesmo quando o restante corpo estava mergulhado em exsudados sonhos. A mão atirava-se ao mundo como se o mundo precisasse da sua intendência. Não tinha rugas. Não tinha medo dos mapas que se abrigavam no seu avesso. Regia os minutos por que o dia corrente se desembaciava. Não contava os dias, os meses, os anos. Não esperava que o tempo se vingasse ao dela fazer uma mão trémula. Não sabia por que o tempo se quis vingar.

Passou a ser noite quase o dia inteiro – como se o inverno tivesse sido importado de árticas latitudes. Passou a ter medo da mão, porque sabia-a trémula. Tinha medo de não conseguir domar a mão, que ela esconjurasse a vontade e se insurgisse contra ela, entretendo-se numa autorrecreação que o destinava à inércia. Quando punha a mão a separar a luz que embatia no olhar, percebia os centímetros da sua tremente condição. A própria luz parecia entrecortada por um boicote que se insinuava na luz corrompida. A culpa era da mão trémula, que retalhava a luz como se tivesse pedido uma sepultura. 

Não conseguia suportar a ideia da mão trémula. Não sabia desnodar o labirinto da madurez que começava a pender no outono em forma de precipício. Conferia as páginas avivadas como se fosse o paradeiro que precisava. Como se os apeadeiros fossem passando, sucessivos, e o comboio recusasse parar em cada um deles. Sentia-se um nómada por dentro da vida própria, que deixara de ser a consequência da sua vontade. Que sortilégio se saberia instalado na geografia da decadência, um golpe de asa que deslegitimou o livre-arbítrio? 

A mão trémula ainda era mão. Não estava sozinha, nem fora arrancada ao resto do corpo. O sangue não se refrigerou. As voltas que o mundo dava estavam em sintonia com a mão todavia trémula.

15.9.23

O prestígio do medo

Maria (ft. DJ Glue), "Quem veio de Longe", in https://www.youtube.com/watch?v=6EGEHGkOp1E

Sublinhava a medo os medos que o aterravam, porque a vida era única e efémera. Sem o medo, atiramo-nos a um poço fundo onde encontramos a demência dos riscos que não medem probabilidades. A bravura impensada não é o aval de uma colheita. Já o foi dantes, quando uma gesta de heróis amesquinhava o eu, convencidos de que a salvação do grupo o ditava. Não se peçam heróis hoje, que a função deixa um inventário vazio.

O medo não rima com covardia. Já não se untam os covardes com penas passadas por alcatrão. Tirando um reduto de loucos, já ninguém quer ser investido na posição de salvador de coisa alguma. O medo é a gramática da dignidade de cada um. Se nos convencerem a não termos medo, depressa somos peões dos outros (talvez, não por coincidência, os que promoveram o convencimento). A demência dos que juram por bandeiras, por valores, por ideias, ou por credos, os que de nada têm medo, é arcaica. 

A pulsão do medo corresponde à entronização do eu. A menos que se esteja a calcular mal o caso, e a circunstância do medo não consiga ser aferida, o medo é a resposta à necessidade de resguardar de mezinhas malquistas, da colonização do outro, da retórica que não condiz com os compêndios e atira o eu para a irrelevância. O medo é preciso como salvo-conduto: por ter medo, não vai por ali, não faz isto ou aquilo, não dirá (ao menos em público) o que se pode virar contra ele. Se não houver cabimento ao medo do medo, o medo em si não tem procuração e ficamos desprotegidos, à mão de semear de um algoz que nos iluda com o disfarce do medo.

Possam os atávicos sacerdotes do conservadorismo protestar contra o prestígio do medo, embebidos nas proezas míticas dos antepassados (e quantos não serão mitos fabricados só para os mortais serem convencidos que o medo é superável?): se querem ser síndicos da heroicidade, constituíam-se heróis de trazer por casa. 

Se advertirem que o prestígio do medo é uma concessão ao hedonismo, diga-se-lhes que estão cobertos de razão. Diga-se-lhes que essa é uma razão que não amedronta os que elegem o medo como código de conduta de quem não tem medo de ter medo.

14.9.23

Privação

Baleia Baleia Baleia, “Politicamente Correto” (ao vivo), in https://www.youtube.com/watch?v=5Vno5G03VPk

Termo resolutivo: desprendia-se dos haveres, como exílio interior – como interior jura monástica de austeridade. Uma moda contra a moda: a frugalidade contra a ostentação de haveres, dizem os peritos da atualidade, uma patologia que limita o livre-arbítrio. 

Decidida a hibernação do consumo, era uma questão de reordenar preceitos. A privação era o conceito centrípeto, o compasso que ditava o afivelar perante o mundo. Com estas novas costuras, passaria a ser melhor pessoa (propunham os críticos da imensa massa consumista que se despoja de si mesma ao ser colonizada pela orgia de haveres). 

Não era tanto pela intendência de ser melhor pessoa. A mudança traz a tiracolo uma projeção externa, que é menosprezível. Não se muda para ser melhor aos olhos dos outros. Ou, se se muda com esse propósito, é uma mudança artificial, condenada à nascença – uma contradição de termos. Dizem os mandamentos que a mudança que importa é a virada para dentro. Da maneira como o mundo anda, tão viciado na projeção do eu para fora de si, não parece que os propósitos interiores sejam estimáveis. Esgotam-se no interior de quem promove a mudança e as pessoas estão habituadas a serem julgadas pelos outros (talvez, para poderem assumir o assento de juiz dos outros). Não se privam de comentar as vidas alheias, como se delas fossem acionistas. Os parâmetros que servem para aferir uma vida não aceitam intrusões.  

À ponderação de hábitos responde o apelo pela reconfiguração da vida. Até a causa ecológica ajuda: a privação não agride o meio ambiente; ajuda a completar a coerência das parangonas corretas, um manual de instruções para o bom cidadão. E quem não quer ser bom cidadão? Tirando os misantropos, os que se entregam ao vício da maldade e os aluados, a boa cidadania é um artefacto muito recomendável. Até as criancinhas são educadas para a boa cidadania, desde a escola mais tenra. É a boa cidadania que absolve o cidadão da tremenda complexidade do mundo tecnologicamente avançado que dele faz pouco mais do que um robot, devolvendo-o a uma pureza pré-qualquer-coisa todavia delimitada pelos bons juízos dos bons juízes. 

E ficam todos contentes: o mundo, afinal, não anda muito longe da perfeição. Corrijam-se, como efeito imediato e rasura obrigatória, os supressores do otimismo, os que canibalizam a bondade intrínseca da pessoa, os profetas de apocalipses sempre adiados: estão errados, condenados ao exílio para um desterro onde só habitem equivocadas almas que não se sabem presentear com os encantos que ornamentam o mundo, que é madrigálico.

Investidos na privação até à medula, damos conta: o mundo é invejável, é um antro de bondade.

13.9.23

Sobra o biombo

Sigur Rós, “Skel”, in https://www.youtube.com/watch?v=JQVOCcEG-BA

Tempos de paradoxos, estes: nunca a privacidade foi tão defendida, nunca tanta gente teve uma sede incontestável de visibilidade. Obedecem a um imperativo de nudez, como se tudo o que fosse interior tivesse de ser despojado para agradar aos olhos coletivamente públicos. Como se cada um fosse nacionalizado. 

Fala-se em igualdade, um mantra agora acessível, a democracia próxima da sua pureza (de acordo com o argumento). As pessoas mostram-se e mostram o que dantes só bisbilhoteiros profissionais queriam conhecer. Dizem, em desabono da evolução da espécie, que agora há mais gente a colocar-se à frente de um espelho transparente, mas não há muito mais gente a incarnar o papel de voyeur. Afinal, cuida-se de uma nacionalização dispensável. Para tanta oferta e escassa procura, não é preciso tornar público este recurso.

No mercado das coisas frívolas, as cortinas deixaram de ser baças. Os biombos estão em vias de extinção. Sob o manto diáfano da transparência, a sublimação dos múltiplos eus banalizou o nós. Por mais que os tutores da correção política insistam nas virtudes do coletivo e como o eu deve ser transcendido pelo nós, um movimento tectónico insurge-se contra o manual de instruções. Fica em moldura cintilante o fundamento de tanto desacerto entre os que tutelam a correção política e a maioria, que se distancia do compêndio da correção política e deserta dos seus tutores. As pessoas procuram holofotes, espelhos translúcidos, praças onde tudo se torne público, o emagrecimento da esfera privada. Ambicionam a igualdade que assim se emancipa de teorias. Sem possivelmente saberem (tanta a luz dos néones que as deslumbra e estonteia), oferecem-se ao público no afã de se desprenderem do anonimato. Como se o anonimato fosse o anátema da sua liberdade.

Sobra o biombo, pessoal e intransmissível, a caução de que cada um de nós é um eu singular. A procuração para sermos essa singularidade, contra a devastação feérica da pública visibilidade, na preservação de um anonimato que, contra os piores diagnósticos, não é um decaimento misantropo. Sobra o biombo, para cada um conservar os sigilos que vão aos esteios da existência. Para cada um continuar a ser a singularidade que o distingue de um indiferenciado magma em que medra um nós feito de eus cada vez mais iguais.

12.9.23

À borla

Metric, “Just the Once”, in https://www.youtube.com/watch?v=VYW4F5q7XBE

Metidos os paramentos da bondade, não havia preços estipulados. Mas havia um lugar onde as coisas podiam ser mercadas. As pessoas encontravam-se numa praça limítrofe, fora dos circuitos turísticos, e apresentavam as suas coisas que estavam para oferta. 

Abria-se a licitação de um objeto. O código de conduta estabelecia um período máximo de quinze minutos para arrematar o objeto. Apesar de o mercado se chamar mercado das borlas, só eram admitidas licitações se correspondessem a um preço. Era o que os licitantes estariam dispostos a pagar se tivessem de comprar aquela coisa. Uma prova do valor que o objeto tinha para quem se candidatava a arrematá-la. Mas no mercado das borlas não era admitido dinheiro (nas suas várias transfigurações). O vendedor abria um segundo palco: os licitantes tinham de subir a palco e explicar, numa dúzia de frases, porque queriam ter a coisa em sua posse. Era o mandamento necessário para se saber por que alguém poderia ter despendido uma quantia se o objeto não estivesse num leilão em que a oferta convincente seria equivalente à mais alta num leilão convencional.

Se houvesse mais do que três interessados, era possível estender para trinta minutos o período em que as justificações eram terçadas. Tudo se passava como se fosse um concurso de intenções às quais acrescia uma retórica desarmante. O mercado das borlas era um areópago onde se digladiavam, sem retóricas bélicas ou expedientes argumentativos, os fundamentos dos pleiteantes. Eles eram todos amigos. A hipótese de se hostilizarem estava excluída.

Com o tempo, o mercado das borlas ganhou popularidade. A cada sábado de manhã, mais pessoas iam ao mercado. Não por estarem interessadas em argumentar a favor de uma oferta ao objeto licitado. Constituíam a audiência, os que estavam do outro lado do palco. Um punhado de peritos em argumentação distinguiu-se na licitação dos objetos. Como acontece com muitos mercados, por melhores que fossem as intenções dos intervenientes em abri-los a possíveis concorrentes (podendo, a qualquer altura, duvidar-se da genuinidade desta intenção), formou-se uma oligarquia que dominava os atos em que os objetos subiam a palco e ficavam à mercê da melhor argumentação. Por timidez da maioria, que não sabia subir a palco para lidar com uma multidão; ou, para outros, por autoproclamada falta de dotes retóricos para atuarem num qualquer palco. 

Com o tempo, enraizou-se outro costume: os licitantes não ficavam com o objeto leiloado. Ofereciam-no a uma segunda ronda de licitações, aliciando a audiência para perder a vergonha e subir a palco para esgrimir a sua melhor argumentação. (Assim desmentindo os que suam cicuta contra os mercados, acusando os atores de cercearem a concorrência que, aliás, os próprios críticos desdenham.)

Foram surgindo objetos mais preciosos à medida que o mercado das borlas se popularizava. Os donatários desses objetos eram autênticos mecenas do mercado das borlas. Depois vieram os turistas, quando nos roteiros se fez constar que o mercado das borlas era a versão local do Speakers’ Corner de Londres. Foi quando o mercado das borlas entrou em decadência, sitiado pela adulteração ateada por aqueles que quiseram entalhar o mercado à feição (especulativa) dos turistas.

11.9.23

Hora extra

David Sylvian, “Red Guitar”, in https://www.youtube.com/watch?v=7tTX49CjAgo

Todas as pessoas têm relógio. Elas são a contrafação do tempo. Ninguém sabe: quando as pessoas usam relógio, adulteram o tempo. Ampliam-no quando são atraiçoadas pela tardança e ficam para trás, julgando que, se travarem o tempo, deixam de ficar para trás. Suplicam por uma indulgência que apresse o tempo quando o sentem vagaroso, e todo esse vagar é tortuoso, deixando à mostra cicatrizes que querem escondidas.

Os relógios só existem com pessoas. Há muitos relógios em estado preliminar nas montras das lojas, ostentando a sua soberba para seduzirem um futuro usuário. Quando os relógios estão fora da pele de pessoas, eles contam o tempo da mesma maneira? Não ficam hibernados, suspendendo o tempo, enquanto não habitam o pulso de alguém? 

O tempo diferido é a vingança dos relógios que estão sem dono. Enquanto esperam nas montras sedutoras, estão parados e conseguem travar o andamento do tempo. É por isso que são deletérios do tempo, impedindo que seja contado pela medida estabelecida. Ninguém sabe: numa constelação paralela, autenticada pela verticalidade que sai de si mesma para marinar noutra dimensão, um minuto não tem sessenta segundos.

Não são as pessoas que se desforram do tempo. Abraçam-se à ilusão que adultera a claridade. Vão atrás dos vultos incendiários que são o juro da decente esperança combinada com candidatos a divindades. Enquanto se demoram numa configuração estulta de hibernação, ficam para trás ou julgam-se na vanguarda, assim entendam que o tempo é uma aceleração que não acompanham ou que ele se entedia dele próprio e se vinga nas pessoas que esperam por ele.

Não se espere verdade da empreitada do tempo. Não se espere verdade, apenas. Os relógios rompem o ar pesado que se põe quando antecipamos uma póstuma condição. Nessa altura, deixam de contar – o tempo deixa de contar. A menos que alguém invente a imortalidade. A hora extra.

8.9.23

Fala-me de metáforas

The Smile, “Pana-vision”, in https://www.youtube.com/watch?v=Bi5IIMN40aE

Junta as palavras a esmo e empresta-lhes coreografias, cálices de vinho fresco, o entardecer enamorado, a doçura da boca, a volúpia prometida. Dança sobre as palavras, os gestos aveludados caindo sobre o papel branco que serve de chão, o palco onde ensaias as metáforas. 

Dizes: “temos que dar riqueza às palavras, resgatá-las da anemia, entronizar as metáforas.”

Subimos ao promontório onde apanhamos as coisas extintas. Vemos o mar, como se perde no horizonte, ou como o horizonte se encontra com o mar e lhe dá vida. Não podemos deixar de falar de fusão. De como a fusão legitima as diferenças e como é através dela que cada um se cumpre. Encontramo-nos a meio de um diadema. Se as palavras fossem apenas motes, não diríamos muito. Preferimos as palavras desprendidas, sabê-las como património único e de como são entendidas pluralmente: elas não têm um só sentido, e com isto desmentimos dicionários. Assumimos o risco. Nosso é o soldo de falarmos através de metáforas. Ao contrário do que diriam os patronos das convenções, não nos escondemos das palavras.

Dizes: “se pudéssemos, escrevíamos um dicionário de metáforas. Só para fazer as pazes com os dicionários. Mas estaríamos a trair as metáforas.”

Algumas foram as vezes em que abraseámos a noite com a caução do nosso fervor. Fomos a sua fogueira. Os nossos corpos eram as centelhas que emprestavam claridade à noite submissa, éramos como luas que caiavam o crepúsculo. Não queríamos substituir a noite. Sabemo-la imaterial. Procurávamos uma defesa contra o sortilégio da noite. Descobrimos o segredo: refugiámo-nos nos corpos recíprocos, superando a medida do tempo que se descontinuava quando hibernamos no impudor do deleite. Os nossos corpos não eram metáforas; ou talvez fossem, se nos detivéssemos para pensar no assunto.

Dizias, então: “oxalá sejamos mecenas da vontade intrínseca e apenas a nós seja passada procuração para sermos diligentes. Não deixemos que o futuro adultere o sangue presente. Não queremos ser reféns da matéria imprópria que é o futuro. Nem que seja preciso uma constelação de metáforas que seja o armário onde nos saciamos quando forem levados à nossa presença atentados contra o idioma.”

E eu dizia que sim. Sem ser uma metáfora.

7.9.23

Nomenclatura

Sonic Youth, “Incinerate” (Live from the Basement), in https://www.youtube.com/watch?v=77Z9fdkPuNI

Perde-se a identidade se não houver um código que sustente a semântica. As pessoas têm de falar umas com as outras. E não é apenas falar, têm de se entender para a comunicação não ser um logro. Usam um código, uma gramática, um feixe de significações que habilita a comunicação. 

Nomenclar faz parte do código. Há partes do idioma que são específicas, vertidas sobre uma área delimitada que mantém o diálogo entre especialistas. São convocados pela nomenclatura, que também é específica a esse domínio. Às vezes, uma nomenclatura é uma ilha dentro do idioma. Uma ilha à qual a maioria manifesta estranheza: muito embora a nomenclatura se socorra do idioma que todos falam, é quase um idioma forasteiro. As pessoas mal conseguem pronunciar os termos técnicos, muito menos alcançam a sua inteligibilidade.

A nomenclatura pode estender-se a códigos próprios, na poesia, por exemplo: o poeta é o vate; flúmen é o rio. Pode ser inventada por um escritor, que se põe a escrever no idioma pátrio mas usa uma nomenclatura idiossincrática. Pode invocar as sereias sem estar a trazer à colação figuras míticas que vivem nas profundezas dos mares, mas apenas as mulheres lúbricas que convivem com as ruas da cidade. Pode empregar o termo “estrumeira” sem ter por referencial uma pocilga, antes endereçando a morada aos mandantes que desfiguram o bem-estar. Pode usar antónimos propositadamente, querendo dizer o oposto do que está escrito, sem passar por mitómano ou incendiário. E usar palimpsestos para enredar o leitor em labirintos dos quais terá dificuldade em se desembaraçar.

A nomenclatura assim patenteada pode ser apenas uma tentativa para escapar à ditadura do lugar-comum que contamina o idioma na sua utilização diária. A estreiteza das paredes por onde circula o código linguístico é uma prisão. (Para os demais, será a sua zona de conforto, movendo-se semanticamente nas baias estreitas que aprenderam na escola.) Os que usam nomenclaturas próprias arrematam a criatividade. Estendem o território da língua, não ficando presos a convenções avoengas, redutoras da riqueza da língua.

Eu posso dizer: 

a tarde consumia as pétalas desmaiadas, desobstruindo a cavidade profunda onde os silêncios se ajuramentavam. 

Não estarei a fazer alusão ao entardecer que é ateado pela véspera da noite. Falta apurar se a hermenêutica do leitor quadra com a nomenclatura que se esconde naquela frase devidamente cifrada por metáforas consecutivas. Ou apenas, como estratégia narrativa, deixar ao leitor a missão hermenêutica, deferindo liberdade interpretativa para atribuir significados à oração.

6.9.23

Bairro baixo, golpe alto

Beirut, “So Many Plans”, in https://www.youtube.com/watch?v=vvSUMXU5ziU

Eram baixios, às vezes depressões. No sentido geográfico do termo: terras abaixo do nível do mar. Por que alguém convencionou chamar a estas terras “depressão”? O preconceito vinha de trás, do que significa a palavra “depressão” na linguagem médica, de como se foge da patologia e, de acordo com peritos, todos a temos em medidas e graus variáveis. Uma depressão geográfica não tem afinidade com a perspetiva patológica da palavra. Era altura de desfazer o preconceito: a depressão geográfica era depressão porque é chão que está abaixo do nível do mar. Essas terras não são doentes. 

A bula dos sentidos adulterava-se no Bairro baixo. Se era voz comum que o oxigénio rarefeito das altitudes elevadas transtorna o raciocínio e a capacidade física, notava-se um efeito simétrico no bairro baixo. Era como se os cérebros fossem irrigados por um feixe de oxigénio a que não estavam habituados, esse feixe sinalizando abundância. A velocidade a que as coisas se passavam era alucinante. Havia, naquele lugar, a predisposição para tempestades cerebrais. As ideias tropeçavam umas nas outras sem perderem ordenação. As palavras não eram sabáticas. Constava que um poeta fizera uma residência artística e escreveu a eito duzentas páginas de poesia.

Umas vozes ábsonas tiravam partido do direito à divergência. Davam-se mal com os espíritos livres e com os expedientes que algumas deles procuravam para se desamarrarem para voos furtivos. Denunciavam a abundância lisérgica, o estado de todas aquelas almas que reclamavam um estatuto de liberdade pura. Os algozes administravam a inveja, todavia escondida: ai de quem murmurasse que estes autos de fé eram patrocinados por gente que, em sonhos recônditos, aspirava ao seu momento lisérgico. 

Para os habitués do bairro baixo, nada disso contava. A liberdade votava os críticos à irrelevância. Se queriam a mesquinhez, que fossem deixados com a mesquinhez. Se quisessem cavalgar na estrumeira da inveja, não lhes vedassem o acesso. Patronos da leveza de espírito, teorizavam sobre os efeitos terapêuticos das terras abaixo do nível do mar. Um efeito lisérgico, anotavam em páginas lustrosas com a devida dose de tinta da china. 

E o governo do sítio, aferroado aos edifícios onde lavrava o parapeito da centralização (e o estigma do poder), fazia de conta que desdenhava do bairro baixo. Queriam que os deuses, quando cinzelaram a geografia do país, tivessem sido pródigos noutras depressões. O bairro baixo era exíguo. O acesso estava limitado, para evitar a degradação do ecossistema. Todos, moradores, frequentadores e o governo, queriam, a uma só voz, que os golpes altos continuassem a brotar do bairro baixo. Se os bairros baixos fossem numerosos, as pessoas andavam distraídas. Não podiam escrutinar o poder. Esse era o seu golpe alto – e o golpe baixo do governo.

5.9.23

Porco ibérico, ou um cartaz de iberismo incorrigível

Royal Blood, “Shiner in the Dark”, in https://www.youtube.com/watch?v=kMHyAx4QLEU

Nunca perguntaram aos porcos ibéricos se querem continuar a ser espanhóis e portugueses. E, contudo, os porcos ibéricos, sendo ibéricos por genealogia, devem ser os primeiros interessados em que Portugal e Espanha deixem de ser países soberanos, fundindo-se num só. De outro modo, ibérica não seria a sua linhagem. 

Os apóstolos da soberania (de cada lado da fronteira) encontrarão rudimentos de uma conspiração que hostiliza a História de cada país. A meio do protesto, vociferam contra os Barrabás que abjuram a independência. Do lado castelhano, as vozes zurzem contra os catalães, os bascos, os galegos e até alguns andaluzes que sonham com a sedição que os leve à independência. Do lado lusitano, vozes atentas insurgem-se contra os imperialistas castelhanos que aspiram à correspondência entre a geografia da península ibérica (mais arquipélagos adjacentes) e um país só. Os apóstolos da conspiração não falam a uma só voz. Os que se amedrontam com a hipótese de uma Ibéria alimentada desde Castela divergem da conspiração que amedronta os advogados de defesa de uma hispanidade que se mobiliza contra as regiões autónomas.

Alheios a tudo isto, os porcos ibéricos ostentam passaporte da Ibéria (ou não fosse ibérica a sua árvore genealógica). Pastem nas planícies alentejanas ou nos pastos andaluzes, não se consideram portugueses nem espanhóis. São ibéricos. Podia ser apenas para serem indulgentes com os ignaros americanos que consideram, em maioria estatisticamente comprovável, que a geografia da península ibérica coincide com um país único com capital em Madrid.

Falta saber se o porco ibérico é sedentário ou se, respondendo a um impulso nómada, se espalhou pela geografia da península ibérica. E falta saber se os porcos ibéricos se miscigenaram com porcos de outras genealogias, contagiando-os com o sangue ibérico. Talvez já não haja porcos autóctones e eles sejam quase todos ibéricos. Só para fazer o favor aos sonhos dos iberistas de serviço. Como se a espécie fosse uma praga.

Podia-se pensar em nomear o porco ibérico como embaixador da causa iberista. Possa não ser boa a ideia, para que os aguerridos soberanistas, de um lado e do outro da fronteira, não caiam num devaneio de genocídio, liquidando, um atrás do outro, os exemplares conhecidos da genealogia ibérica. Nem era do interesse de lojas de presuntos e de outro fumeiro à base de porco. Quando a produção supera os desejos dos consumidores, os preços naufragam. A Ibéria – com a vossa licença – perderia um porta-estandarte.  

Os mercados (que são malditos para os iberistas) detestam a ideia de uma Ibéria, mas labuzam-se com o fumeiro do porco ibérico.

4.9.23

Os grandes chefes de cozinha são como os mais famosos DJ

Blur, “The Narcissist”, in https://www.youtube.com/watch?v=5Gr8Z3rUeJM 

Cuida-se da mistura de ingredientes. Cuidam os grandes chefes de cozinha (aliás: todos os cozinheiros, para ser democrático). E cuidam os DJ, os famosos e os amadores.

Os grande chefes de cozinha distinguem-se pela criatividade de quem acasalou ingredientes improváveis que se conciliam (“harmonizam”, para usar o jargão profissional) numa iguaria sumptuosa. São mestres nas misturas – e quanto mais exóticas, mas bem conseguidas, as misturas, mais próximos estão de uma estrela Michelin. Os DJ também se esmeram nas misturas. Misturam sons, à procura de uma alquimia que faça com que os ouvintes fiquem extáticos. Seja alcançado esse estado lisérgico e o DJ merece a sua estrela Michelin em forma de mesa de mistura estatuada.

Os grandes chefes de cozinha são parecidos com os DJ nos gestos meticulosos que emprestam à função. Os DJ foram adestrados num código gestual que é mimético, DJ após DJ. Manuseiam botões e botõezinhos numa sinalética que dá vida às misturas de músicas e sons. Quando ligam ou desligam um botão, a mão sai disparada até ao enfiamento da cabeça, como se dessem corda à música por sua vez alimentada pela combinação de botões e botõezinhos. 

Os grandes chefes de cozinha têm um ritual semelhante. Quando empratam, arqueiam-se sobre a obra-prima e, à medida que depositam os componentes da iguaria, fazem descer a cabeça até junto do prato, como se fosse necessário emprestar ao preparado a aura do grande chefe de cozinha, tão arrebatados se debruçam sobre a iguaria. Depois, soerguem-se e ficam a contemplar a obra-prima desde o seu ponto altaneiro, visivelmente orgulhosos com a proeza. À sua maneira, os grandes chefes de cozinha e os DJ são viciados em maneirismos.

(Parêntesis final, só válido para os grandes chefes de cozinha. Tanta e desassombrada criatividade poderia levar um cientista social, daqueles que se faz transportar numa modalidade de experimentalismo epistemológico, a indagar se a criatividade dos grandes chefes de cozinha se estende a outras áreas da sua vida pessoal, nomeadamente aquelas que passam pelo domínio da intimidade, para averiguar se a criatividade é exportada da cozinha para os lençóis (ou outro qualquer lugar onde a função ocorra). Não se anteveja que tal projeto de investigação passe no crivo de uma comissão de ética. Mas, da maneira como anda o presente, ninguém diga que a impossibilidade é a tradução desta vanguardista hipótese de investigação.)

1.9.23

Ex-aequo

Black Country, New Road, “Snow Globes” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=AUQY8x-QauQ

Era tanta a sede de fazer iguais que não escolhiam uma das alternativas a concurso. Não havia concurso. As alternativas não eram admitidas a concurso. Por mais que lhes explicassem que a escolha era imperativa, recusavam a incumbência. Defendiam-se com a reserva de consciência e ninguém os podia forçar a fazer uma escolha. Por mais que os tentassem convencer que uma das alternativas era melhor, desviavam-se do imperativo categórico com a válvula de escape do subjetivismo. Se esbracejassem com a objetividade, questionavam quem estatuiu os critérios objetivos. Se acenassem com as credenciais irrepreensíveis dos senadores, logo loteados num lugar à prova de contestação, diligenciavam interrogações que punham em causa conceitos como “irrepreensível”, “senador” e “à prova de contestação”.

Não queriam ser figurantes de um estojo de cosmética em que as escolhas estavam contaminadas à partida. Um melhor é o melhor porque correspondeu aos parâmetros estabelecidos. Importava saber quem os estabeleceu; se é aceitável a sua linhagem para abraçar tamanha incumbência; e se não há interesses escondidos na escolha ou, o que é pior, na determinação dos critérios que avalizam a escolha.

Iam mais longe: não podiam ser obrigados a fazer uma escolha. Podiam argumentar que escolher uma alternativa fazia parte do roteiro necessário; podiam aquiescer que sem esta ordem de alternativas a provisão do tempo e a escala do futuro se tornavam impossíveis; mas eles avocavam a liberdade de espírito que compreende a latitude de decisão sobre se escolher ou não entre as alternativas perfiladas.

Confiavam na intuição. A intuição declarava caça às seriações que ditam o obséquio de uma escolha. Insurgiam-se contra a opacidade das alternativas a concurso: de onde vieram, quem as formulou, que contextos as explicam, havia interesses disfarçados atrelados às alternativas a concurso? Preferiam a não escolha. A ausência de alternativas. Um vasto deserto, apenas à espera que fossem eles, em pose de arquiteto supremo, a ditar sentenças, a prover hipóteses, a jurar que nunca dariam caução a um primeiro lugar, a um segundo lugar e assim sucessivamente. Não escolhiam. E isso era uma escolha, que começava a fazer escola.

Os apóstolos do ex-aequo tornaram-se os piores déspotas.