Não importa ter o arnês cingido ao corpo: quando for o ocaso apalavrado no dicionário dos deuses, o corpo estilhaça-se e não fica memória que se acautele. Podem os líricos espaventar o fantasma da morte, podem desencolerizar o momento com uma toada poética que remete para a alma, que fica, imorredoira, a sentenciar as memórias dos que já tiveram sepultura. Nada se opõe à finitude, ao derradeiro sono de que não há sonhos inventariados.
Se às cores te agarrares, poderás adiar o que será inadiável num futuro qualquer. Por mais que te angustie a ideia, não ficas para semente. Mesmo que os líricos se esforcem em acerar as ilusões, a decadência não se limita ao corpo. O corpo deixa de funcionar, as pessoas que te são queridas (as outras não importam) continuam a albergar-te na memória durante algum tempo. Não serás uma representação imorredoira, como entoam os procuradores da teoria que mantém a existência de vida para além da morte. Não te dês tanta importância. Depois de atestada a tua finitude, não querias sobressaltar aqueles a que queres impor o prolongamento das memórias além da tua existência física. Se te são queridas, não merecem que as exorcizes dessa forma.
Não há registo do que é ser a morte quando marca vez no calendário. Que esta hipótese seja levada à consideração: é um sono, um sono do qual não se volta a acordar, um sono sem a presença de sonhos (ou, se é que serve de compensação, de pesadelos). Um sono, só. Ao contrário da vida, um sono perene. Não podemos regressar da finitude a que fomos condenados. Se alguém aspira a uma condição perene, tem-na no sono derradeiro, do qual não volta a sentir o desprazer da aurora que o retirava da letargia do sono.
Não te importes se te desmentirem a profecia autorrealizável em que teimaste. Dir-te-ão, em abono dos teus desenganos, que não serás semente vindoura. Não te importes, pois se, por um milagre onírico, as leis da vida fossem desmentidas e ficasses para semente, não era grande coisa que legavas para o mundo vindouro. Ao menos que saibas: o lugar desaconselhado a que te julgas encomendado também não se conjuga com a perenidade.
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