Dantes, a mão dedilhava cordas de guitarra, às vezes cordas de violino. A mão apressava o sangue que irradiava pelo meio das veredas que escondiam a pureza da vontade. Dantes, a mão não era trémula. Tudo parecia correr em transgressão, como se a própria transgressão estivesse dissolvida no amparo da reinvenção dos termos: como transgressão empossada, deixava de ser válida a lei transgredida. E a transgressão, esvaída, perdia pergaminhos.
A mão não era trémula, dantes; tinha por dentro da carne a força de um vulcão. Nunca dormia, mesmo quando o restante corpo estava mergulhado em exsudados sonhos. A mão atirava-se ao mundo como se o mundo precisasse da sua intendência. Não tinha rugas. Não tinha medo dos mapas que se abrigavam no seu avesso. Regia os minutos por que o dia corrente se desembaciava. Não contava os dias, os meses, os anos. Não esperava que o tempo se vingasse ao dela fazer uma mão trémula. Não sabia por que o tempo se quis vingar.
Passou a ser noite quase o dia inteiro – como se o inverno tivesse sido importado de árticas latitudes. Passou a ter medo da mão, porque sabia-a trémula. Tinha medo de não conseguir domar a mão, que ela esconjurasse a vontade e se insurgisse contra ela, entretendo-se numa autorrecreação que o destinava à inércia. Quando punha a mão a separar a luz que embatia no olhar, percebia os centímetros da sua tremente condição. A própria luz parecia entrecortada por um boicote que se insinuava na luz corrompida. A culpa era da mão trémula, que retalhava a luz como se tivesse pedido uma sepultura.
Não conseguia suportar a ideia da mão trémula. Não sabia desnodar o labirinto da madurez que começava a pender no outono em forma de precipício. Conferia as páginas avivadas como se fosse o paradeiro que precisava. Como se os apeadeiros fossem passando, sucessivos, e o comboio recusasse parar em cada um deles. Sentia-se um nómada por dentro da vida própria, que deixara de ser a consequência da sua vontade. Que sortilégio se saberia instalado na geografia da decadência, um golpe de asa que deslegitimou o livre-arbítrio?
A mão trémula ainda era mão. Não estava sozinha, nem fora arrancada ao resto do corpo. O sangue não se refrigerou. As voltas que o mundo dava estavam em sintonia com a mão todavia trémula.
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