Tempos de paradoxos, estes: nunca a privacidade foi tão defendida, nunca tanta gente teve uma sede incontestável de visibilidade. Obedecem a um imperativo de nudez, como se tudo o que fosse interior tivesse de ser despojado para agradar aos olhos coletivamente públicos. Como se cada um fosse nacionalizado.
Fala-se em igualdade, um mantra agora acessível, a democracia próxima da sua pureza (de acordo com o argumento). As pessoas mostram-se e mostram o que dantes só bisbilhoteiros profissionais queriam conhecer. Dizem, em desabono da evolução da espécie, que agora há mais gente a colocar-se à frente de um espelho transparente, mas não há muito mais gente a incarnar o papel de voyeur. Afinal, cuida-se de uma nacionalização dispensável. Para tanta oferta e escassa procura, não é preciso tornar público este recurso.
No mercado das coisas frívolas, as cortinas deixaram de ser baças. Os biombos estão em vias de extinção. Sob o manto diáfano da transparência, a sublimação dos múltiplos eus banalizou o nós. Por mais que os tutores da correção política insistam nas virtudes do coletivo e como o eu deve ser transcendido pelo nós, um movimento tectónico insurge-se contra o manual de instruções. Fica em moldura cintilante o fundamento de tanto desacerto entre os que tutelam a correção política e a maioria, que se distancia do compêndio da correção política e deserta dos seus tutores. As pessoas procuram holofotes, espelhos translúcidos, praças onde tudo se torne público, o emagrecimento da esfera privada. Ambicionam a igualdade que assim se emancipa de teorias. Sem possivelmente saberem (tanta a luz dos néones que as deslumbra e estonteia), oferecem-se ao público no afã de se desprenderem do anonimato. Como se o anonimato fosse o anátema da sua liberdade.
Sobra o biombo, pessoal e intransmissível, a caução de que cada um de nós é um eu singular. A procuração para sermos essa singularidade, contra a devastação feérica da pública visibilidade, na preservação de um anonimato que, contra os piores diagnósticos, não é um decaimento misantropo. Sobra o biombo, para cada um conservar os sigilos que vão aos esteios da existência. Para cada um continuar a ser a singularidade que o distingue de um indiferenciado magma em que medra um nós feito de eus cada vez mais iguais.
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