Na casa da frente, o estendal ganhou proporções elefantíacas: são estendais amovíveis, uns atrás dos outros, e toda a roupa de Inverno (ou grande parte dela) a secar ao sol, depois de ter ido a banhos à lavandaria.
Mergulho nas memórias da infância. As pessoas estavam habituadas a tirar dos armários a roupa da estação que estava quase a ser inaugurada. Para exorcizar a longa hibernação da estação anterior, e libertar o guarda-fatos das algemas do mofo, ora o submetiam a uma temporada na máquina de lavar (ou, antes disso, nos tanques onde se lavava a roupa), ora se limitavam a arejá-lo durante uns dias para os ácaros serem repreendidos pelo ar puro.
(Na altura o ar era puro, se for usado o hoje como medida para a comparação. Ensina a ciência credível e convincente.)
Não sei nada dos costumes sociais, ou dos parâmetros higiénicos que, quero acreditar, passaram pelo crivo da ciência. Não perguntei a conhecedores se ainda existe o uso social e se se justifica aos olhos da ciência (ou se é apenas a craveira do “saber popular”). Se o olhar viajasse pelas imediações, só naquela casa as roupas eram defumadas dos maus espíritos do Verão. Pode ser que a trivialidade não esteja calendarizada com rigor e que, naquele dia, só os vizinhos da casa da frente aproveitaram o fim de semana para o ato protocolar da defumação da roupa que vem a seguir.
Não sei nada disso. Mas a observação, e a evocação da infância, faz pensar se o protocolo da higienização das roupas invernais para memória futura não está carregado de simbolismo. É o Verão, quase a ceder o lugar ao Outono, por sua vez a prefaciar o Inverno (para os espíritos insatisfeitos: o Inverno é sempre tardio), que exige a renovação do vestuário que vai entrar a serviço mal o primeiro frio e as chuvas inaugurais se façam notar. Este vestuário, amarfanhado nas catacumbas para não se intimidar com as temperaturas impróprias do Verão, precisa de respirar antes de ser respirado pelos poros dos usuários.
O Outono toma o lugar do Verão e as roupas que se esconderam da estação estival precisam de reaprender o ar e o sol e a escuridão quando a noite toma conta de tudo. É o Outono que precisa de esconjurar o Verão, tanto o exsudar que tudo contaminou. O Outono não quer assinar as mesmas páginas do Verão. Por isso é que há calendários e os costumes estabelecem que as estações são diferentes umas das outras. E as roupas também. Que precisam de respirar, antes de serem respiradas.
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