Eram baixios, às vezes depressões. No sentido geográfico do termo: terras abaixo do nível do mar. Por que alguém convencionou chamar a estas terras “depressão”? O preconceito vinha de trás, do que significa a palavra “depressão” na linguagem médica, de como se foge da patologia e, de acordo com peritos, todos a temos em medidas e graus variáveis. Uma depressão geográfica não tem afinidade com a perspetiva patológica da palavra. Era altura de desfazer o preconceito: a depressão geográfica era depressão porque é chão que está abaixo do nível do mar. Essas terras não são doentes.
A bula dos sentidos adulterava-se no Bairro baixo. Se era voz comum que o oxigénio rarefeito das altitudes elevadas transtorna o raciocínio e a capacidade física, notava-se um efeito simétrico no bairro baixo. Era como se os cérebros fossem irrigados por um feixe de oxigénio a que não estavam habituados, esse feixe sinalizando abundância. A velocidade a que as coisas se passavam era alucinante. Havia, naquele lugar, a predisposição para tempestades cerebrais. As ideias tropeçavam umas nas outras sem perderem ordenação. As palavras não eram sabáticas. Constava que um poeta fizera uma residência artística e escreveu a eito duzentas páginas de poesia.
Umas vozes ábsonas tiravam partido do direito à divergência. Davam-se mal com os espíritos livres e com os expedientes que algumas deles procuravam para se desamarrarem para voos furtivos. Denunciavam a abundância lisérgica, o estado de todas aquelas almas que reclamavam um estatuto de liberdade pura. Os algozes administravam a inveja, todavia escondida: ai de quem murmurasse que estes autos de fé eram patrocinados por gente que, em sonhos recônditos, aspirava ao seu momento lisérgico.
Para os habitués do bairro baixo, nada disso contava. A liberdade votava os críticos à irrelevância. Se queriam a mesquinhez, que fossem deixados com a mesquinhez. Se quisessem cavalgar na estrumeira da inveja, não lhes vedassem o acesso. Patronos da leveza de espírito, teorizavam sobre os efeitos terapêuticos das terras abaixo do nível do mar. Um efeito lisérgico, anotavam em páginas lustrosas com a devida dose de tinta da china.
E o governo do sítio, aferroado aos edifícios onde lavrava o parapeito da centralização (e o estigma do poder), fazia de conta que desdenhava do bairro baixo. Queriam que os deuses, quando cinzelaram a geografia do país, tivessem sido pródigos noutras depressões. O bairro baixo era exíguo. O acesso estava limitado, para evitar a degradação do ecossistema. Todos, moradores, frequentadores e o governo, queriam, a uma só voz, que os golpes altos continuassem a brotar do bairro baixo. Se os bairros baixos fossem numerosos, as pessoas andavam distraídas. Não podiam escrutinar o poder. Esse era o seu golpe alto – e o golpe baixo do governo.
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