Sublinhava a medo os medos que o aterravam, porque a vida era única e efémera. Sem o medo, atiramo-nos a um poço fundo onde encontramos a demência dos riscos que não medem probabilidades. A bravura impensada não é o aval de uma colheita. Já o foi dantes, quando uma gesta de heróis amesquinhava o eu, convencidos de que a salvação do grupo o ditava. Não se peçam heróis hoje, que a função deixa um inventário vazio.
O medo não rima com covardia. Já não se untam os covardes com penas passadas por alcatrão. Tirando um reduto de loucos, já ninguém quer ser investido na posição de salvador de coisa alguma. O medo é a gramática da dignidade de cada um. Se nos convencerem a não termos medo, depressa somos peões dos outros (talvez, não por coincidência, os que promoveram o convencimento). A demência dos que juram por bandeiras, por valores, por ideias, ou por credos, os que de nada têm medo, é arcaica.
A pulsão do medo corresponde à entronização do eu. A menos que se esteja a calcular mal o caso, e a circunstância do medo não consiga ser aferida, o medo é a resposta à necessidade de resguardar de mezinhas malquistas, da colonização do outro, da retórica que não condiz com os compêndios e atira o eu para a irrelevância. O medo é preciso como salvo-conduto: por ter medo, não vai por ali, não faz isto ou aquilo, não dirá (ao menos em público) o que se pode virar contra ele. Se não houver cabimento ao medo do medo, o medo em si não tem procuração e ficamos desprotegidos, à mão de semear de um algoz que nos iluda com o disfarce do medo.
Possam os atávicos sacerdotes do conservadorismo protestar contra o prestígio do medo, embebidos nas proezas míticas dos antepassados (e quantos não serão mitos fabricados só para os mortais serem convencidos que o medo é superável?): se querem ser síndicos da heroicidade, constituíam-se heróis de trazer por casa.
Se advertirem que o prestígio do medo é uma concessão ao hedonismo, diga-se-lhes que estão cobertos de razão. Diga-se-lhes que essa é uma razão que não amedronta os que elegem o medo como código de conduta de quem não tem medo de ter medo.
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