28.9.23

Bem-vindos ao fascismo invertido

Idles, “Well Done” (live at Yala! Sessions), in https://www.youtube.com/watch?v=F55r3leCI5c 

“Há pessoas que nunca se perdem porque nunca se põem a caminho.” 

Johann Goethe

A título de exórdio: não imagina o leitor como vai ser custoso escrever este texto, por aparentar ser uma defesa da direita radical (ou extrema-direita, ou neofascistas – fica ao critério do leitor o apodo adequado ao Chega). Se fosse preciso começar por uma declaração de interesses, teria de informar o leitor eventualmente desatento, ou o leitor com dificuldades hermenêuticas, ou o leitor motivado (por conveniências que só ele poderá explicar) a ler neste texto uma colagem à direita radical, que considero soez a direita populista, radical e extremada e concordo que os partidos de centro-direita ergam cordões sanitários que coloca a extrema-direita fora das cogitações de governo.

Não seria preciso esta declaração de interesses. À cautela, fica em jeito de prefácio, escrita com todas as letras (como se estivesse a soletrar pausadamente todas as vírgulas, fosse dito oralmente): a extrema-direita do Ventura é uma tumefação que deve ser enjeitada em coligações governamentais.

Ouvi na rádio um comentário da autarca de Almada que me pôs a pensar se a diligência em combater os neofascistas não faz medrar fascistas do avesso (e não alimenta neofascistas emergentes). O assunto está na ordem do dia, aqui e por todo o lado onde o estigma da direita radical assusta muita gente. Devo dizer: a extrema-direita assusta-me por razões diferentes das que são brandidas por quem entra numa deriva existencial se não esbracejar constantemente o fantasma do fascismo. Inês Medeiros afirmou que só devem ficar de fora de coligações de governo partidos que ofendem a Constituição. Não o disse, mas entendeu-se: o Chega é, para a edil de Almada, o único partido político com lugar no parlamento que não respeita a Constituição e apresenta propostas que reprovariam no crivo do Tribunal Constitucional se fossem aprovadas como lei.

Entendo o raciocínio. Há que prevenir (e, se forem precisas medidas mais radicais, impedir) os neofascistas de irem para o governo, na medida da sua ostensiva ofensa aos valores constitucionais. O Chega é encostado à posição de partido pária. Mas é um partido pária que ocupa uma posição paradoxal. Por um lado, foi legalmente constituído e conseguiu eleger um grupo parlamentar que não se pode deslegitimar. É um partido do regime. De outro modo, não teria nascido, impedida a sua criação pelo Tribunal Constitucional. Por outro lado, temos vultos da intelectualidade e pessoas com responsabilidades políticas que encostam o partido da direita radical às cordas, considerando-o ilegítimo para participar em acordos de governo. 

Esta é uma dissonância que deve ser participada. Ou se ilegaliza o Chega, impedindo-o de ir a eleições, com os danos esperados para as credenciais democráticas de quem o propuser e assim julgar; ou, sendo um partido do regime, concorrendo a eleições e elegendo um número de deputados representativo de uma percentagem da população que não pode ser desprezada, não pode ser constitucionalmente banido, e com a devida antecedência, de possíveis fórmulas governativas. 

Um partido (seja qual for, desde que seja legal) que concorre a eleições não pode ser impedido de participar numa solução de governo. É contra a lógica da Constituição, contra a filosofia dos atos eleitorais e encerra um acantonar dos eleitores desse partido que pode atear uma conflitualidade que não é salutar para a democracia. Ao mesmo tempo, o cerco à direita radical é um bálsamo a seu favor. O partido vitimiza-se, atraindo muitos eleitores que se solidarizam com o partido vitimizado. Se o Chega é o seguro de vida dos socialistas, há alguns socialistas que retribuem a amabilidade com medidas de efeito equivalente. Se não fosse dramático, seria de um cinismo aterrador.

Se querem impedir que o Chega chegue ao governo, tenham a coragem de o ilegalizar. Só então, segundo a doutrina Medeiros (que é a doutrina de muitos pensadores da esquerda para a sua esquerda), é que tudo fica na paz interior de saber que os neofascistas estão afastados do governo. Podem ir a eleições, mas estão proibidos de ir para o governo. Como não se desconfia que os partidos de esquerda coloquem a hipótese de se coligarem com a extrema-direita, deixem os cordões sanitários para a direita moderada. Não sejam procuradores do centro-direita.

Estou consciente que muitos recusam a teoria da equivalência entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. Não admitem essa equivalência, para avivar a repugnância em relação à extrema-direita – até porque os neofascistas sentem saudades de Salazar. Carrega-se a tecla do desprezo pelos valores constitucionais para estabelecer a diferença que impede a equivalência entre os extremos. As esquerdas reveem-se na Constituição e são ativistas na sua defesa. É esta a diferença que impede a equivalência entre a extrema-direita e qualquer esquerda que seja, por gente mais cínica e profundamente mal-intencionada, etiquetada como extrema-esquerda.

As circunstâncias histórias colocam a extrema-esquerda do “lado certo” da História e a extrema-direita do seu “lado errado”. Os que são condescendentes com os partidos de extrema-esquerda usam a contingência histórica para ilibar sobretudo o PCP e condenar o Chega ao ostracismo. Contudo, a análise deve transcender o foro da História: se é certo que o PCP foi militantemente ativo no combate à ditadura salazarista (vá lá: ao fascismo, para os que tanto banalizam o fascismo não se assanharem), o modelo sociopolítico que o PCP defendeu e ainda defende, com notórias saudades da defunta União Soviética, não pode cair em saco roto. A defesa desse modelo encerra, no plano dos princípios políticos fundamentais, uma clara violação da Constituição. Os que abjuram a extrema-direita por não se rever na Constituição não aceitam, por miopia história (ironia do destino) ou por conveniência arbitrária, colocar a extrema-direita e a extrema-esquerda no mesmo plano. 

Se calhar, podemos falar de fascismo invertido (já que se banalizou o fascismo).

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