12.9.23

À borla

Metric, “Just the Once”, in https://www.youtube.com/watch?v=VYW4F5q7XBE

Metidos os paramentos da bondade, não havia preços estipulados. Mas havia um lugar onde as coisas podiam ser mercadas. As pessoas encontravam-se numa praça limítrofe, fora dos circuitos turísticos, e apresentavam as suas coisas que estavam para oferta. 

Abria-se a licitação de um objeto. O código de conduta estabelecia um período máximo de quinze minutos para arrematar o objeto. Apesar de o mercado se chamar mercado das borlas, só eram admitidas licitações se correspondessem a um preço. Era o que os licitantes estariam dispostos a pagar se tivessem de comprar aquela coisa. Uma prova do valor que o objeto tinha para quem se candidatava a arrematá-la. Mas no mercado das borlas não era admitido dinheiro (nas suas várias transfigurações). O vendedor abria um segundo palco: os licitantes tinham de subir a palco e explicar, numa dúzia de frases, porque queriam ter a coisa em sua posse. Era o mandamento necessário para se saber por que alguém poderia ter despendido uma quantia se o objeto não estivesse num leilão em que a oferta convincente seria equivalente à mais alta num leilão convencional.

Se houvesse mais do que três interessados, era possível estender para trinta minutos o período em que as justificações eram terçadas. Tudo se passava como se fosse um concurso de intenções às quais acrescia uma retórica desarmante. O mercado das borlas era um areópago onde se digladiavam, sem retóricas bélicas ou expedientes argumentativos, os fundamentos dos pleiteantes. Eles eram todos amigos. A hipótese de se hostilizarem estava excluída.

Com o tempo, o mercado das borlas ganhou popularidade. A cada sábado de manhã, mais pessoas iam ao mercado. Não por estarem interessadas em argumentar a favor de uma oferta ao objeto licitado. Constituíam a audiência, os que estavam do outro lado do palco. Um punhado de peritos em argumentação distinguiu-se na licitação dos objetos. Como acontece com muitos mercados, por melhores que fossem as intenções dos intervenientes em abri-los a possíveis concorrentes (podendo, a qualquer altura, duvidar-se da genuinidade desta intenção), formou-se uma oligarquia que dominava os atos em que os objetos subiam a palco e ficavam à mercê da melhor argumentação. Por timidez da maioria, que não sabia subir a palco para lidar com uma multidão; ou, para outros, por autoproclamada falta de dotes retóricos para atuarem num qualquer palco. 

Com o tempo, enraizou-se outro costume: os licitantes não ficavam com o objeto leiloado. Ofereciam-no a uma segunda ronda de licitações, aliciando a audiência para perder a vergonha e subir a palco para esgrimir a sua melhor argumentação. (Assim desmentindo os que suam cicuta contra os mercados, acusando os atores de cercearem a concorrência que, aliás, os próprios críticos desdenham.)

Foram surgindo objetos mais preciosos à medida que o mercado das borlas se popularizava. Os donatários desses objetos eram autênticos mecenas do mercado das borlas. Depois vieram os turistas, quando nos roteiros se fez constar que o mercado das borlas era a versão local do Speakers’ Corner de Londres. Foi quando o mercado das borlas entrou em decadência, sitiado pela adulteração ateada por aqueles que quiseram entalhar o mercado à feição (especulativa) dos turistas.

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