26.9.23

A inteligência artificial é uma vingança dos que não são criativos

The Chemical Brothers ft. Beck, “Skipping Like a Stone”, in https://www.youtube.com/watch?v=nRtxogXp8sY

A besta emancipou-se e sobrepõe-se aos criadores. É o retrato medonho de uma distopia narrada em filmes de ficção científica. Não interessa se houve intencionalidade dos criadores. Se terão antecipado a probabilidade de a besta cortar as amarrações e só fazer o que quer, sem escrutínio dos criadores ou (vá lá) de uma entidade destinada a sindicar a atividade prolífica da besta.

Agora, a besta tem milhentos tentáculos. Sabe de tudo, opina sobre tudo, responde sem exceções, cria. Cria a uma velocidade que os criadores de artes não conseguem acompanhar (nem em utopias dedilhadas nos melhores sonhos). Há livros feitos pela besta. Música composta pela besta. Ela resolve complicados problemas matemáticos. Consegue esboçar obras de arte, da pintura à estatutária. Mas não consegue o milagre de curar doenças incuráveis, nem acautelar a possibilidade da imortalidade (para os que lamentem como superior perda o seu abandono do mundo dos vivos). E não consegue aconselhar os políticos medíocres a “desenharem” (maldito estigma da tradição literal que faz o seu caminho com amplitude) políticas que consigam efeitos bondosos. Suprema heresia: a besta até consegue fazer poemas.

Os artistas e os que dependem da propriedade intelectual estão em pânico. Temem a concorrência, por mais que seja uma concorrência distorcida: uma pessoa não pode competir com uma máquina tentacular, qual hidra de milhões de cabeças que tudo consegue abarcar. Protesta-se contra a inteligência artificial: protestam os autores, que se distinguem pela sublime criatividade que emprestam às suas manifestações artísticas; protestam os que são sensíveis à humanização das artes, repudiando a sua colonização por máquinas que não têm o menor vínculo a gente-gente. Alguns, em silêncio, são cúmplices por causa do silêncio. Outros, os habituais fazedores do futuro, os que se apaixonam desbragadamente pelas virtudes do avanço tecnológico, perguntam: não há inconveniente que as artes também estejam ao alcance de máquinas sofisticadas.

Os botas de elástico rejeitam a banalização das artes. O ato de criação humana vulgariza-se no sopé de uma besta maquinal que maximiza as suas capacidades para expor as fragilidades dos humanos. Mas a arte, em todas as suas possíveis manifestações, é a maximização do humano. É perpassada pelo sangue e pelo suor dos criadores, trespassada pela cultura que se embebe na mais profunda ossatura. As máquinas não reproduzem estes elementos. Se vierem a fazer arte, que seja catalogada numa subespécie de arte (com a admissão da bondade da hipótese) que a distinga da arte feita por pessoas.

Evitar a transumância da inteligência artificial serve para que os que nunca foram gente no restrito mercado das artes não venham a ter um lugar, fazendo da besta a interposta entidade que por eles faz criação artística. Dando um golpe de misericórdia nas artes, atiradas para o precipício da desumanização. Ou para que paire a desconfiança de que foram os sem veia criativa que se vingaram do ato da criatividade  na sua única posse, que foi terem criado a besta.

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