As pessoas diziam que o silêncio mordia na carótida, como se um lobisomem se locupletasse das palavras, que assim ficaram por dizer (assim por dizer). Não se sabia se as pessoas sabiam o que diziam. O silêncio é poético, de acordo com os poetas e alguns misantropos. Então se estiverem por perto espanhóis...
(Há uma teoria, ainda sem direito a marca registada, que admite a propensão para os espanhóis falarem mais alto por terem problemas auditivos – só falam alto porque ouvem mal: melhor simplicidade ontológica não se configura. Se ganhasse foros de ciência, ficaria provado o impensável: uma marca genética ligada a uma determinada nacionalidade. Ponham-se de molho as barbas da teoria. Uma hipótese, dada à lhaneza e à probabilidade que se senta na estatística, ensaia a resposta: os espanhóis levantam os decibéis da fala porque são foliões; e certificam-se que nada do que dizem fica à margem de quem os ouve.)
Entre os cidadãos, uma corrente distinguiu-se pelo ativismo contra o silêncio. Em sua defesa, uma prédica: o silêncio acentua o ensimesmar das pessoas, nega-lhes a natureza social; o silêncio é ensurdecedor, porque enche o pensamento de devaneios sem catadura e especulações que não ganham lugar nos compêndios da filosofia. Estes cidadãos levaram uma petição ao parlamento. Queriam uma lei para calar o silêncio. Temiam que o silêncio colonizasse as palavras e, num devastador golpe antropológico, acordássemos condenados à mudez. Não o disseram com todas as palavras, mas queriam que intuíssemos que o silêncio é a mordaça moderna que espalha a censura por dentro das democracias. Só faltou aduzir o fascismo.
(O tão banalizado fascismo, o mau da fita convencionado, ao ponto de haver tanto fascismo, ou o fantasma omnipresente do fascismo, que o fascismo – o autêntico, o que merece reflexão da ciência e tem entrada própria nas enciclopédias – se esgota no solipsismo dos que o brandem constantemente.)
A corrente ganhou maré e todos os dias se inventariavam novos seguidores. Havia cada vez mais gente a admitir que o silêncio doía. A coutada do silêncio devia estar delimitada por lei, como se houvesse uma zona demarcada do silêncio entre a meia-noite e as sete horas (fins de semana descontados, que os cidadãos não escondem a sua propensão para o hedonismo.) Era preciso dizer, com a voz espanholamente audível, que o silêncio tinha de ser calado, para não ser o calado da palavra a naufragar na ditadura do silêncio.
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