21.9.23

As fronteiras por dentro

Cousteau, “She Don’t Hear Your Prayer”, in https://www.youtube.com/watch?v=ItnWTREnP8o

Cortava a eito as palavras do medo. Há por dentro uma clepsidra que lateja incessantemente, contando os segundos, irregulares. O sangue bombeado sem critério não irriga o pensamento e os lapsos superam a gravidade de uma simples distração. A cadeia alimentar não está de atalaia: quem vier será caçador meritório, que a carne distraída fica à mercê de ser presa fácil. 

Diziam: “foi para isto que ergueste fronteiras interiores?” Estava apalavrado o código de conduta dos gregários. Não era pelo sedentarismo que o copo de virtudes se enchia. A misantropia não era bem recebida – ouvir que era “bicho do mato” era um mal menor, nem todos sabiam do significado de ser misantropo. As fronteiras por dentro tinham essa serventia: delimitavam os muros que não transigem intrusões. Contra a ameaça existencial que descendia do exterior, a pusilanimidade das fronteiras por dentro.

“Estou em contramaré”, admitia, sem levar a sério a acusação que pendia dos que não perdoavam ter levantado fronteiras interiores. Se não fosse pela arbitrariedade dos síndicos, era capaz de tolerar um módico de convivência. Ouvia, outra vez, a recomendação do estatuto gregário como fator de pertença – de como a integração era exigência irrecusável. Continuava a não dar parte fraca (assim considerada, a parte fraca). Os aljubeiros andam escondidos, disfarçam-se de gente solene, adriçando hinos e lemas que servem de salvo-conduto para quem a eles adere. Não era o caso. Não se dera o fenómeno da integração com os outros, que dissolve as fronteiras a uma atávica reminiscência. 

As fronteiras por dentro eram um passaporte para uso próprio. Fazia coro com Sartre: “o inferno são os outros”. Discordava da formulação, por sentir a necessidade de somar uma vírgula, ali omissa: “os outros, são o inferno”. A vírgula era a pauta de um solilóquio. A oração estava separada em duas partes por ação da vírgula hermenêutica. Os outros estavam à parte do inferno. Deixariam de ser os povoadores do inferno? Talvez Sartre estivesse errado. Ainda não há provas que o inferno seja um lugar destilado de almas.

Se for provado que o inferno não é o inferno como aprendemos desde tenra idade, os outros são a melhor companhia que se pode ter. Desmentindo Sarte e denunciando a permanência de fronteiras por dentro.

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