29.9.23

3+1

Cowboy Junkies, “Sweet Jane” (live), in https://www.youtube.com/watch?v=6FuyBXH2IFw

Discutia-se a variância do choro, sem se saber de onde provinham as lágrimas. Podiam ser manifestações de emoções capilares, num processo químico por patentear. Podiam ser exibições de autocomiseração, que os há a desfilarem pungência só para serem alvos da piedade dos outros. Podia ser de cortar cebolas belicosas. Podia ser só um slogan para cativar poemas singulares.

Ou do sono: as pessoas dormem sonos diferentes e os seus sonhos são tão variáveis que só para os inventariar era preciso um computador com memória de elefante. Alguém teve uma ideia peregrina: e se os sonhos fossem inventariados e o tempo a eles correspondente fosse creditado a quem se oferecesse para os moderar? As pessoas podiam viver para além dos cem anos. 

Não tardou a oposição à ideia: puxaram da espada argumentativa para fazerem saber que o tempo da vida que se leva é a conta certa. Ainda iam a dizer, em surdina, que até é tempo excessivo, mas não queriam ser acusados de misantropia existencial. Somaram um princípio metódico de reserva da privacidade: mostrar os sonhos em público era caucionar o anátema da invasão da privacidade, como se não fossem de sobra os atentados que são sobre ela cometidos. Outros se juntaram à oposição, não por temerem uma extensão da vida que prolongasse o sofrimento que ela representa, mas porque arguiam que os sonhos são insondáveis. Muito provavelmente, teríamos uma mistificação onírica com base numa imensa paleta de mentiras de todos aqueles que fossem participar os sonhos sem saberem ao certo o que tinham sonhado. 

A ideia peregrina estava presa a um excesso de voluntarismo dos seus pais fundadores. Quando o voluntarismo peca por excesso, a ingenuidade é o ramal por onde as consequências confluem. As intenções não eram más. Quem (descontando os niilistas inveterados a quem dói a vida que têm) não gostaria de prolongar a existência para além dos cem anos? Alguns estariam preparados para pagar o ónus da revelação dos seus sonhos. Para os que têm na vida um festim, era um custo necessário. Assim como assim, podiam sempre mentir sobre os sonhos sujeitos a inventário. Ainda ninguém descobriu um método diferente para escrutinar os sonhos que habitam os sonos das pessoas. Outros, porém, não estariam dispostos à transação. Os seus sonhos são diamantes em bruto que não se trocam por nenhuma garantia de extensão da vida. Temiam que ganhassem em lágrimas o que perdiam da reserva dos sonhos.

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