29.2.24

Prólogo

Radiohead, “Lotus Flower” (live from the Basement), in https://www.youtube.com/watch?v=JAhywJkalUE

Da terra feita de fogo, o gelo em moldura para ser narcótico – ou apenas uma vidraça que disfarça as dores de quem é por ser refém dos sobressaltos. Há um sortilégio na passagem do tempo, como se tudo fosse uma frágil construção à mercê de conspirações obscuras que confirmam a negatividade de tudo.

A matéria fina não transige com as tergiversações: é preciso inventar a determinação para se sobrepor à tibieza de quem anda à boleia de interrogações sucessivas (ouvia dizer amiúde). Por mais que os filósofos ensinassem que não são as respostas que importam, mas ter o dom de saber formular as perguntas, à medida que as perguntas se empilhavam parecia sentir a sua tonelagem a esmagar o ar. 

Era preciso voltar às origens. Parar no tempo e arranjar um lugar para apreciar o espaço, pedindo ajuda ao espaço na interior peregrinação que abonasse um calibre a preceito. Tinha de se convencer que o inventário de interrogações sem resposta não é uma maldição. Ao contrário de outros, que muito se prezam e veneram a sua incomensurável sapiência, firmava as mãos na olímpica humildade de quem recorre ao velho, mas sempre novo, aforismo de que só sabe que nada sabe. As interrogações são o cabo de atalaia sobre a imensa enseada que parecia consumida nos prantos da sua orfandade.

A prodigiosa paisagem é como um sinal sem linguagem catalogada. As interrogações herdadas do passado não têm o peso da ausência das respostas. As pedras sob os pés impedem a fulgurante anestesia dos sentidos; são elas que ateiam a ininterrupta atalaia, como se fosse preciso ser testemunha a tempo inteiro das demandas do mundo, das demandas que traziam os sentidos em perene combustão. O corpo paira sobre o vazio de um fiorde, como se os braços conseguissem alcançar as margens que distavam entre o precipício. As metáforas alinham-se para o concurso de ideias. Somos inteiros quando preenchemos o glossário com os sentidos irrequietos das palavras. Devíamos arranjar metáforas como alternativa às respostas.

Podemos ser apenas prólogo; ninguém diga que é obra acabada, ninguém jure que não houve perguntas órfãs de respostas, que só o consentimento da sepultura o atesta. Nessa altura, a voz emudecida já não alinha interrogações.  

28.2.24

Dá-me a tua maré

Beck, St. Vincent, Liars e Mutantes, “Never Tear Us Apart”, in https://www.youtube.com/watch?v=rJtP-kGBzIw

A partitura não precisa de pauta. Basta o luar, um lampejo de luz que emudece as trevas enquanto os medos estagiam à boca da noite. Os fantasmas fogem como podem, vão de mãos vazias, eles também mudos. As mentiras extintas (espera-se – a menos que seja outra, e maior, mentira) convocam as memórias do futuro. Os navios não se intimidam com a maré volumosa pressentida por um marégrafo itinerante.

As cores conspiraram uma greve, estão suspensas. O filme passa a preto e branco, como se tivéssemos perdido o paladar e a refeição opípara soubesse a nada. Não nos importamos. Arrancamos do magma os poemas bússola. Estão nas nossas mãos, como se perguntassem o que queremos fazer com eles. Não respondemos. Deixamos que sejam eles a responder por nós. A maior medida de liberdade é serem os poemas a falar por nós. Compõem uma maré invisível que segreda ao ouvido as profecias que depressa esquecemos. Não queremos saber da arquitetura do futuro; hoje, dormimos embalados pelas estrofes quiméricas.

A maré agitada desmotiva a prova do mar. Contemplamos as ondas que se emaranham umas nas outras, delas nascendo outras, promissoras, ondas que querem palco, trepando pelas ondas vizinhas. Se houvesse uma descrição do caos seria a tela do mar convulsivo que os olhos apreciam. O mar a pouca distância ecoa a morte (se alguém se aventurasse a ser seu escansão). Se houvesse mercê de o esquecer, depressa regressaríamos ao altar da nossa fragilidade. 

Os mares guardam incontáveis cadáveres. São as suas sepulturas e ao mesmo tempo seus tutores. Os cadáveres que nunca foram resgatados da prisão do mar não querem vingança. Não querem a companhia de outros marinheiros ou aventureiros. À profundidade em que estão, deixaram de ver a claridade. Se pudessem, diriam como se fosse uma advertência: no cozinhado dos paradoxos, a grandeza do mar esconde o pior dos infernos. Diriam: se puderem, escolham outro como o vosso inferno. Do mar, queiram apenas as marés que vos aplaudem. 

E nós, sem podermos estar temporadas ausentes do mar, contemplamo-lo com reverência. Não vamos ao marégrafo itinerante apalavrar juras sobre o mar. Apenas deixamos o olhar viajar no mar, voando sobre as ondas até que o sonho se funda com o horizonte. Esperamos que a maré nos levite até ao avesso do horizonte. Às viagens não dizemos que não, nós que não paramos de crescer à conta do inventário das geografias que não conhecemos.

27.2.24

Todos a bordo

PJ Harvey, “Seem an I”, in https://www.youtube.com/watch?v=IM0Ddro7Dus

“Isto faz-me lembrar uma piada que vi circular na Internet. Dizia que quem fica contente com as vitórias da direita é porque é rico ou então porque é estúpido. Bom, ricos sabemos que não somos.”

Carmo Afonso, in Público, 26.02.24, p. 40

     Os cães que ajudam a apascentar o rebanho cercam as reses e lançam correrias erráticas enquanto despejam latidos. Os cães-pastores são incansáveis e previnem o tresmalhar das reses. Sabem, os cães, que após o recolher do rebanho aos estábulos recebem a recompensa. Então podem saciar a fome e a sede com as vitualhas que o pastor preparou. Depois, é dormir o sono dos justos. Não fosse pela sua diligência, o pastor e a família tinham perdido muitas cabeças de gado. Afinal, deve ser magro o pecúlio avençado ao entardecer. Não é paga proporcional. Os abastados são, sempre, pistoleiros da ingratidão. 

Podia ser apenas uma metáfora. Mas não é.

A direita cabalística despeja o anátema da arrogância sobre a pose moralista de certas personagens de esquerda e das esquerdas radicais. É um trunfo virado do avesso. Depressa os visados contra-atacam com o queixume de que são vítimas da intolerância “da direita”. Depois disso, é um diálogo de surdos. Exacerbado em época de campanha eleitoral, quando a retórica cheia de ardis e o tiro ao alvo ao adversário sobem ao palco e cimentam a mediocridade. 

Não queria alinhar pela bitola dos mercenários da direita belicosa que se abespinham com as provocações dos que militam nas esquerdas. Os das esquerdas só têm de dar o mote. O resto, na pulsão desastrada que lhe é típica, fica por conta desta direita ora antiquada, ora distraidamente apta a cair nas armadilhas espalhadas pelos das esquerdas. O fogo cruzado de acusações será a prova que a razão não pode estacionar em nenhum dos lados da trincheira. Os de direita acusam os de esquerda de pesporrência moral e de serem intolerantes. Os de esquerda fazem suas estas palavras e devolvem a acusação. Os acusadores trocam de lugar com os acusados, dependendo do lugar da trincheira em que se situem.

Dizia há dois parágrafos: não queria tomar partido da direita enfunada, nem queria transmitir a impressão de que estou a distribuir trunfos pelas esquerdas de diferente cepa. Mas há alturas em que o sangue, por ser ateado de fora, fica em ebulição. O silêncio não pode perdurar, sob pena de outra, e pior, impressão ficar a latejar na carótida: o nada dizer sobre aleivosias gratuitamente bolçadas pode traduzir cumplicidade com os que as bolçam (podia considerar a hipótese que os irrelevantes não merecem atenção, aqui deixada de lado).

Carmo Afonso, a cronista trissemanal que ocupa a última página do Público, é daquelas pessoas que passa a impressão de seduzir com facilidade enquanto, ao mesmo tempo, esgrime o florete pelas costas à pessoa que amesendou com ela. (Corro o risco de cometer uma tremenda injustiça, pois não conheço a Carmo em pessoa; só do que escreve). Digo, curto e grosso: ainda bem que sabemos o que escreve, pois ser vítima da sua dissimulação fica ao critério dos néscios ou dos distraídos. O silêncio, ou a indiferença, só se for para não saldar a perigosa intolerância de quem nos pespega lições de tolerância.

Não tenho feito o inventário das conclusões assombrosas, baseadas em preconceitos e em pressupostos que são profecias autorrealizáveis, que industriam um raciocínio moldado ao jeito do lugar ideológico em que a Carmo se encontra. Ontem, a certa altura, fez-nos um desenho para percebermos: “a direita” tem a austeridade ajuramentada (faltou-lhe explicar que a austeridade, no estado em que a economia se encontra, é um contrassenso), porque “a direita” só sabe estar do lado dos endinheirados e das empresas que têm lucros pornográficos. E assim fomos testemunhas de uma notável cartada extraída da cartola em que labora o raciocínio prodigiosamente enviesado de Carmo Afonso.

O pior estava reservado para o final do sermão. É a citação que dá o mote a este texto. Carmo Afonso não consegue perceber como 57% dos que participaram na última sondagem admitem votar em partidos de direita. Carmo Afonso podia abdicar da advocacia e prestar-se ao papel de grande educadora dos cidadãos. Para ensinar “Como deixar de ser estúpido I e II” e “Teoria geral da perniciosidade da direita”. Pelo caminho, podia preparar um projeto de lei a proibir “a direita” – a direita toda – de concorrer a eleições. Os estúpidos, enfim, deixariam de ter em quem votar, o que talvez pudesse contribuir para a sua conversão em gente justa, avisada e penhoradamente racional, depois de começarem a votar na esquerda (comme il faut).

A diferença entre a Carmo Afonso e alguém de direita moderada e moderna é que, ao contrário da Carmo, aqueles de quem discordamos não são excluídos da praça pública. Nem são ofendidos com a insinuação, mal disfarçada, de que não sendo ricos só podem ser beócios. Todos são bem-vindos a bordo. Sobretudo para podermos discordar uns dos outros. A menos que os cinquenta anos da revolução de 25 de abril sejam para restaurar o pensamento único, a intolerância e a exclusão dos que não pensam como deve ser.

Carmo Afonso: a democracia deve ser como a arca de Noé. Ou como a discoteca que está, generosamente, de bar aberto.

26.2.24

Aparentemente (clepsidras e palimpsestos)

The Chemical Brothers, “Sometimes I Feel So Deserted”, in https://www.youtube.com/watch?v=saZVNLMMmmo

Garrafas vazias que enchem o mar: aparentemente, terá sido um marinheiro, entediado com os dias sucessivos de mar, a atirá-las borda fora. Desenganam-se os que as apanharem depois de devolvidas à praia. Estão vazias. 

Mas podiam não estar vazias. Ao abri-las, os curiosos tiravam um papel corroído pela humidade. Aparentemente, uma história contada no papel. As suas rugas e o amarelecido estado impedem conclusões. Aparentemente, a garrafa contém uma mensagem. Mas está ilegível. Para todos os efeitos, a mensagem foi extinta.

Sem capitularem, os argonautas da praia, que a esquadrinham à procura de tesouros (ou de simples seixos que depois não vão ornamentar coisa alguma), examinam meticulosamente as garrafas como fossem cientistas. Como se as estivessem a autopsiar, à procura de outros sinais que possam exteriorizar uma mensagem. Há vestígios que aparentemente podem ter um significado. Mas não são peritos em hieróglifos ou linguagem cifrada. 

Aparentemente, tudo tem de conter mensagem. São as entrelinhas e o subtexto. As figuras de estilo que atiram outros significados para cima da mesa, cultivando a hermenêutica criativa dos exegetas. Parece uma batalha de interpretações. Uns lunáticos juram que decifraram um sentido todavia ininteligível. Vestem de roupagens improváveis os espaços em branco, como se houvesse espaços ocupados (não há). Fazem palavras cruzadas sem terem a grelha de análise. Depois de tão dissecadas, as garrafas extraídas ao areal já não servem nem para despojos. Talvez acabem numa qualquer instalação artística.

A exuberância de significados forjados chegara ao limite. Exaustos, anuem que nem tudo tem de conter uma mensagem. A ausência de mensagem já é uma mensagem: alguém que queria libertar o seu silêncio e que houvesse, milhares de milhas náuticas depois, quem fosse testemunha desse pungente silenciar. 

Às vezes, as palavras não são precisas. Perdem-se na sua contumácia, coabitando com o medo dos que desconfiam que vão ser banidas. Aparentemente, não têm razão. Ninguém tem razão, para bem da razão.

23.2.24

Levamo-nos muito a sério e isso faz mal à tensão arterial (remake)

U2, “Gloria”, in https://www.youtube.com/watch?v=ybYgP48X2DY

Há pertenças que tornam as pessoas intolerantes. Começa a ser insuportável, porque a intolerância de uns ateia a intolerância de outros, numa tremenda bola de neve que avança imparável pela montanha abaixo. Pertenças variegadas que acicatam os que as elas juram fidelidade além-canina. As almas abespinhadas por um motejo ou por uma graçola mandam dizer que não se brinca com coisas sérias – eis a herança tardia de um certo ambiente salazarento que nunca foi exorcizado da sala comum que habitamos.

Os ofendidos usam linguagem dura para se queixarem dos que ultrajaram a inatacável honra da entidade a que juraram fidelidade. Não chegam a perceber que, provavelmente, os que acusam de afronta têm de estar preparados para que lhes dediquem o mesmo tratamento que deu origem a exacerbados pedidos de defesa da honra. Se todos não nos levássemos demasiado a sério, encaixaríamos melhor o escárnio que nos é dedicado. Sem ser necessário procurar vingança, saberíamos que os que usam um veneno para nos atacarem podem ser vítimas desse veneno no dia seguinte. Temos de estar preparados para sermos alvos preferenciais da fina ironia dos outros. Ou vamos colocar uma mordaça na boca deles, só para a nossa honra não ficar ofendida?

O medo que tenho se a resposta a esta interrogação for afirmativa, é que estejamos a caminhar para a inversão de valores. Cada um trata da sua honra conforme lhe apraz. Na escala de valores, a honra de alguém não pode vir antes da liberdade de expressão de todos os outros. Corremos o risco de castrar a liberdade e de, sem darmos conta, à conta das pequeninas idiossincrasias que não admitem desveneração, estarmos no abismo da tirania por outros meios. Proibidos de falar sobre os outros, ensimesmamos. Pode ser a receita perfeita para a misantropia geral.

Não nos podemos levar tão a sério. Não somos perfeitos e haverá quem se irrite connosco por razões que podem ser válidas para o irritadiço. Nem tem validade o preceito que convoca o respeito pelos outros para os outros nos poderem respeitar: não está em causa o respeito, está em causa a ironia com que os outros podem olhar para nós e a nós assistir o poder de encaixe para não sermos algozes da liberdade de expressão dos outros. Se quisermos, podemos usar da mesma moeda, que o cavalheirismo olímpico saiu de moda, e podemos responder: “olha quem fala”, seguido de um rosário de escárnio em resposta ao escárnio. E ninguém fica mal, ninguém deve levar a mal.

Em jeito de (des)exemplo, exibo o muito católico gesto de dar a outra face antes do tempo (pois não li, nem ouvi, retratos cínicos a mim dedicados). De mim podem dizer que tenho escrita gongórica;  que tenho medo da velhice; que fujo de uma imagem que, todavia, é a que transpira para o exterior; que abuso dos valores que devo cultivar; que sou refém da maldita coerência; que tenho pouca paciência para as angústias alheias; que exagero na exigência com os outros (exteriorizando uma certa intolerância); que sou refém da autodisciplina que me amordaça. E outras coisas que tais, que escapam à autoavaliação.

22.2.24

Fato à medida

Roxy Music, “More Than This”, in https://www.youtube.com/watch?v=kOnde5c7OG8

I. Todas as nuvens eram feitas de nada. Vistas do chão, pareciam ter o peso do chumbo quando o mar as empurra para serem pródigos aventais de chuva precipitados sobre a terra. 

II. Aquele era o homem que perdia seis ou sete guarda-chuvas por ano. Não desistia. Haveria de vir o ano em que não seria constantemente derrotado pela distração. Uma coisa é o esquecimento. Outra é a distração. Ao menos, ainda não tinha chegado ao estado mais elevado de decadência. As pessoas estão habituadas a contentar-se com pouco.

III. As crianças fugiam do manicómio. Atravessavam para o outro lado da rua quando saíam da escola, em barda e ruidosos. Os pais avisavam para terem medo do manicómio. Exageravam: ou atravessavam a rua para o outro lado, ou a loucura dos loucos do manicómio atravessava as paredes e apanhava as crianças. Ninguém quer ser louco, de acordo com a pedagogia dos pais.

IV. Mais tarde, algumas crianças, entretanto adultas, conheceram a loucura. Era de gente que não estava emoldurada nas paredes do manicómio.

V. Das pessoas que vão na rua, quantas estão afogadas na depressão? Quantas são reféns de fantasmas que usam o apelido da loucura para as convencerem que ficaram loucas? Devia haver uma ASAE para controlar os gurus das almas que decretam, com a ligeireza de uma folha caduca, depressões e loucuras tratáveis.

VI. E a saúde mental dos gurus das almas, quem trata dela?

VII. As ruas esburacadas pareciam o espólio da instabilidade das pessoas. Era como se andassem precariamente, cambaleando de um lado para o outro. Uma espécie de embriaguez ditada pela miséria social que transborda. Um engenheiro corrigiu o diagnóstico: as ruas estão esburacadas por causa da chuva. Foi desmentido por um geofísico (e pelo cidadão comum atento ao tempo que faz): este foi um Inverno sóbrio.

VIII. Os forasteiros passeavam pela cidade em chinelos e manga curta. Julgaram que o Inverno era meia Primavera a caminho de ser Verão. Devem ter alergia a boletins meteorológicos, ou não os incomoda a chuva que cai com uma temperatura de dez graus (a crer na sua indiferença estoica). 

IX. As nuvens viajaram para outras latitudes. O sol tomou conta do céu. A loucura continua a existir, as crianças com energia transbordante também, os engenheiros seguem desligados do mundo e os forasteiros, alguns deles, compraram casas e mudaram-se para a terra do Inverno envergonhado. 

X. E há um armazém de perdidos e achados para guarda-chuvas.

21.2.24

A absolvição prometida (toque de Midas)

Nell & the Flaming Lips, “Into My Arms”, in https://www.youtube.com/watch?v=J64XlzOROtI

Assustavam-nos com o peso hediondo do pecado. Do pecado que não era apenas um distanciamento dos mandamentos da religião. Pois o pecado reivindica a culpa e muitos não sabem como transportá-la sem terem de suplicar por redenção. Acossados, uns procuravam absolvição na consciência de um padre. Outros, prometiam que não repetiam o pecado, sabendo que apenas o estavam a adiar. Ninguém lhes disse que o pecado não existe. 

Poucos havia a negarem provimento à ideia de pecado. Estes poucos não admitiam que juízes de fora revistassem os interstícios da consciência para encontrarem vestígios de pecados. Não admitiam, depois de participados os pecados, que fossem sujeitos a uma punição. Como se o castigo apagasse o pecado, ou como se fosse a compensação que se impunha para fermentar o arrependimento. A culpa exige desculpa. E se vier ostentada com a arrogância de quem se investe neste poder, espalha os estilhaços da humilhação. 

Os cânones ensinam a indeclinável propensão para vivermos em conjunto. Somos gregários e não podemos recusar essa condição. Não podemos recusar as consequências dessa condição: não vivemos fechados em conchas onde só existe o eu, as nossas ações são motivadas ou condicionadas pelos outros, as nossas ações podem ter repercussões nos outros. Damos constantemente o flanco ao sangue coletivo que ferve o cimento que torna o grupo coeso. Não podemos afastar os olhos que se abatem sobre o eu que atua: ninguém é uma ilha.

Os exames de consciência deviam ser momentos de exclusiva competência da intimidade de cada um. Só devia ser ativada a consciência que, por definição, não sai dos limites do eu. Se não tivéssemos deixado adulterar o estado de coisas, não consentíamos que a consciência se expusesse aos exteriores julgamentos de valor. Não admitíamos que esgrimissem contra nós o capital de pecados que nos situa numa subcondição. Não nos deixaríamos sitiar pelos outros que se exalçam ao direito de julgar as vidas que estão por fora deles. 

O toque de Midas é a interior demanda pela absolvição. Quando o exame de consciência determina que a redenção se impõe para a consciência fazer as pazes interiores. De outro modo, as sombras do “pecado” (e as aspas vêm de propósito) persistem como um vulto que assombra o tempo visível (ou não). Quem apura a linhagem do pecado é o próprio que se sujeita ao autojulgamento. 

É o único julgamento em causa própria com franquia.

20.2.24

As estrelas não entregam avisos de receção

NewDad, “Sickly Sweet”, in https://www.youtube.com/watch?v=vLldYqAcCm4

De provérbio em provérbio, as mãos andavam pegadas como se fossem irmãs siamesas. Olhavam muito para o céu. Acreditavam que o futuro estava escrito nas estrelas, mas tinham azar quando o inverno ocupava o céu com nuvens demoradas. Fosse como fosse, preferiam as mãos na serventia de oráculos.

Viciados no futuro, desaprendiam os outros tempos. Diligenciavam as melhores prosas para nivelar o futuro pelas esperanças fermentadas num otimismo que não admitia correções. Se fossem ao psiquiatra, diria que estavam sintonizados com a matéria futura porque não sabiam dirimir as consumições em que o presente é pródigo. Iam adiando. Iam-se adiando, ficando veteranos à espera de redenção. Se lhes perguntassem de onde vinha a redenção, apenas sabiam dizer que estava apalavrada no futuro. Nunca lhes disseram, em retorque, que não fora essa a pergunta.

Podiam passar noites inteiras à boleia de um miradouro, dissecando as estrelas que compunham o céu. Apanharam alguma estrelas cadentes, mas nunca atribuíram significado, nem que fosse pela metáfora que se insinuava. Eles não eram estrelas, nunca foram e não aspiravam a sê-lo. Se estrelas havia que estavam cadentes, não podiam ser eles. O indomável ânimo no futuro era prova do contrário. Quase metafísico, o penhor do porvir era gramática incompatível com a decadência. A decadência não seria para eles, convencidos que a morte seria generosa e poupá-los-ia desse agravo.

Ao lado, alguém segredou: “as estrelas não entregam avisos de receção”. O que vier no dorso do futuro está apalavrado à contingência. Ninguém devia aprisionar o devir a um fardo de incerteza, tão pesado. É como navegar sem bússola, sem cartas marítimas, sem saber para onde levar o navio. É como tentar falar num idioma sem o ter aprendido.

Também havia quem dissesse, em abono da sua aventura, que as melhoras encomendas são as que não sabem a morada do destino. E assim, descansados pelo aviso favorável, continuavam a pernoitar em cumeadas olhando militantemente para o céu aliviado de nuvens. Podia ser que dali seguisse o avio para alguma literatura. Nem que fosse essa a minimal recompensa.

19.2.24

O ocidente que o pariu

Paramore, “Burning Down the House”, in https://www.youtube.com/watch?v=I_NKuuQ4Hy0

Denominação de origem protegida, o ocidente fez-se hegemonia. O pensamento nasce de dentro de baias. As palavras obedecem à geografia do contexto. As formatações são impecáveis formas geométricas que não admitem desvios de padrão. A crer na doutrina que nos ocidentaliza, sem pejo. 

As alternativas não ajudam à dissidência. São piores. Não se consagram à liberdade, não admitem discrepâncias, que muitas vezes são pagas com a própria vida extinta, outras vezes endossam a fatura da privação da liberdade sem garantias de tratamento imparcial. As alternativas desconfiam dos valores em que não se reveem, atribuem-nos a conspirações fantasiosas. São hediondas e empurram para a ocidentalização necessária. Por falta de alternativas, que é a pior caução do ocidente.

Há outras alternativas, alinhadas na malha onde se tecem as ideias que não chegaram a ser entronizadas, que não são melhores. Algumas querem desocidentalizar através de uma retórica pós-pós-moderna que prospera desde minorias ativistas, transformando-se em programas de cumprimento obrigatório sob pena de pública humilhação dos que os ousam desafiar. Não conseguem fingir a propensão totalitária que não os distingue das alternativas coetâneas que se opõem à ocidentalização.

A ocidentalização parece irremediável. O que não deve ser um salvo-conduto para transigir com a letargia que se vem impondo à boleia dos pergaminhos não recomendáveis das alternativas existentes e das potenciais. Poder-se-ia falar numa deserção de alternativas. E que essa deserção está na medula da doença existencial que trespassa o ocidente. É a ignição para o adormecimento, o ocidente convencido que o hastear os valores de que se diz curador é a fiança contra as alternativas.

O ocidente anestesiado pode ceder, por demissão, às ameaças que começam a despontar por dentro de si mesmo. A sua letargia ateia a indiferença. As vozes que se rebelam dentro do ocidente berram contra a sua indolência, contra os miasmas que se devotam ao oportunismo e fermentam a desconfiança na aptidão para os condenar e para prevenir futuros párias afins. O ocidente está a capitular, inebriado no autoconvencimento da sua superioridade. A arrogância dos que se julgam superiores sempre foi má conselheira. Costuma ser silenciosamente suicida.

Este ocidente subitamente mal parido parece-se cada vez mais com o agente que promove a sua autodestruição. O ocidente tem de ser mais exigente. Nós temos de ser mais exigentes com o Ocidente.

16.2.24

Príncipe imperfeito

Massive Attack, “Paradise Circus”, in https://www.youtube.com/watch?v=Mfog2LP4oTY

Voltava ao lugar do crime. O crime por pessoa incerta. Mas o crime existira. Voltava. Mas não para confirmar o provérbio – o criminoso volta ao lugar do crime, o raio do estúpido. Entre as muitas dúvidas que, todavia, não o sobressaltavam, podia jurar com o selo do sangue derramado, se preciso fosse, que não tinha sido o autor daquele crime.

E lembrava-se de um atrevimento trivial do povo miúdo: a mórbida propensão para estacionar o automóvel, ou para se desviar da sua função pedestre, espreitando um acidente só para confirmar o mau estado da vítima. Podia-se falar de uma metáfora também ela mórbida: o povo miúdo, que não consegue domesticar a curiosidade pelo sangue alheio, trata-se como o criminoso que volta ao lugar do crime, sem ter havido crime e sem ser, ele próprio, o criminoso.

Às vezes, tinha de saber as sensações que o percorriam nestes lugares emoldurados pela tragédia. Uma estação de comboios que testemunhou uma carnificina, um memorial que eterniza as vidas extintas pela covardia alheia, o mar imenso que engoliu navios e marinheiros indefesos, as alminhas que povoam as estradas nacionais para que ninguém esqueça que pode ser vítima de acidentes de viação – enfim, os cemitérios, que são sempre o sepulcro coletivo que aviva a tragédia que é a morte. Sem que a morbidez contaminasse esta pulsão.

A aspiração da perfeição não é um presente envenenado. A participação não é distintiva da confissão imediata das limitações. Entra-se numa empreitada com o desejo de a arrematar sem arestas vivas, no máximo que a perfeição admite pela constelação de possibilidades. O desfecho pode não se compatível com essa aspiração. Ora por fragilidades dos próprios atores. Ora por erros de julgamento – a errada aferição das circunstâncias, o errado sopesar dos outros, pois deles também depende a arrematação da empreitada, os imprevistos, ou apenas a má escolha dos meios para os fins. 

Os erros integram o sangue que nos corre nas veias. E podemos ser príncipes na mesma: príncipes por dentro dos principados que habitamos, conscientes das muitas fragilidades que arroteiam um mar de imperfeições de que somos curadores. Essas imperfeições são o estado mais próximo da perfeição a que podemos ambicionar. 

15.2.24

Os excluídos (por conta própria)

Perfume Genius, “Nothing at All” (live at the Palace Theatre), in https://www.youtube.com/watch?v=ZtUuMPTbcbc

Contra a parábola da pertença, contra as insinuações de “cimento social” que autorizem a tutela dos engenheiros sociais, contra imperativos categóricos, contra a amálgama a que estamos condenados quando somos ungidos pelo dedo protetor dos que nos pastoreiam, contra as alcáçovas que prometem miragens.

Contra arbitrariedades escondidas no formalismo do regime, contra os vultos que se disfarçam de senadores, contra os meirinhos que aparecem depois na cadeia de comando, contra os plumitivos que reproduzem acriticamente a doutrina oficial (como se estivessem apenas a soldo), contra os que povoam a base da pirâmide e aceitam tudo sem pestanejar (porque aceitar a estabilidade é o seu dever primeiro).

Contra as patranhas disfarçadas de eloquência, contra as tresleituras que avariam o fusível do entendimento, contra as castas disfarçadas de outra coisa qualquer, contra os véus baços que se abatem sobre a inteligibilidade do sistema, contra os farsantes que primam pela apatia, idiotas úteis do sistema, contra os cultores de provérbios, contra os lugares-tenentes que aspiram a subir na escadaria social, contra os mitómanos profissionais que trepam às costas do oportunismo. Contra, e sempre, o que aprouver ser do contra.

A favor da liberdade, contra os que a limitam com pretextos extravagantes que correspondem a falsificações. A favor da não pertença, contra os sacerdotes que empunham bandeiras irrenunciáveis e entoam hinos atávicos. A favor da vontade, sem deferir as algemas disfarçadas que colonizam a dilação. A favor da incoerência, se ela acontecer por acaso ou se for intencional, contra os tribunais supremos que intuem a não linhagem humana do erro. A favor do nomadismo, quando anunciam os bons ventos futuros da pertença habitual; e a favor do sedentarismo, quando os profetas sem assinatura legível aconselham o exercício, tão preocupados, mais do que nós mesmos, que possamos morrer.

A favor da exclusão, da antipatia, da misantropia dedicada, das provocações mal recebidas, da desconfiança dos metodicamente otimistas. A favor do céu obscurecido perante os magnatas do pensamento imprescindível. A favor das páginas ao acaso, das estrofes sem regras. A favor das assinaturas que mudam todos os dias. A favor dos labirintos cheios de palavras cruzadas, contra a indigência dos que dispõem o nivelamento por baixo. A favor da liberdade das artes e das letras, contra os que ditam os modismos. A favor da Liberdade, na suas múltiplas aceções. A bem da liberdade dos que o quiserem ser, sem concessões que a hipotequem, sem transigir com a exigência máxima daqueles que a querem delimitar.

A favor das bandeiras despojadas, dos hinos dilacerados, dos senadores depostos, da inelegibilidade dos mandantes apanhados em flagrante mentira, da bênção sem rito aos que souberem dizer repetidamente “não” quando forem convidados a tolerar as intolerâncias dos outros. 

A favor dos excluídos, para que nunca precisem de ser incluídos.

14.2.24

Onde estão as lágrimas dos velhos?

Cocteau Twins, “Know Who You Are at Every Age”, in https://www.youtube.com/watch?v=Jh5dFh1hWHI

Os olhos não marejavam. Pétreos, podiam ser alicerces de arranha-céus. Dos velhos se dizia serem corações de ferro que secaram o manancial das lágrimas. Pudera: já tinham sido vítimas de tantos sobressaltos, consumidos por tantas angústias, que agora eram carne dura, cansada, mas à prova de bala.

Os rostos dos velhos desaprenderam o sorriso. Eles desaprenderam a confiança. Não exibiam queixumes em público, mas tinham razões do mundo que não fora pródigo com eles. A rudeza no trato não era de propósito; era uma defesa que hasteavam contra as vinganças vindouras que o mundo preparara. Estavam seguros desta profecia. Tinha sido sempre assim. Podiam arriscar esta História do futuro.

Obliteravam as lágrimas até quando as emoções irradiavam. Apertavam o estribo que cerceava as emoções quando pressentiam que podiam ficar frágeis. Um arnês contra os contratempos que dispensavam. Era desta matéria granítica que se compunham. A experiência dera para erguer um muro de segurança contra os hostis elementos exteriores. Não se esperassem emoções visíveis. Já tinham guardado essa bandeira numa arca que não tencionavam reavivar.

Os olhos secos eram a fiança para não voltarem a ser feridos. Já chegara: as feridas dos tempos idos, agora traduzidas em indisfarçáveis cicatrizes. Diz-se que as cicatrizes enrijeceram a alma, imunizando-a contra as lágrimas. Os velhos não precisavam de lágrimas. As que verteram tinham esgotado a fonte. Como se tivessem sido acometidos por um estio prolongado e não houvesse motivos para o espólio de lágrimas reservado num de si lugar recôndito. 

Diziam: as lágrimas são uma perda de tempo. Não fornecem atalhos seguros para superar as inquietações que as habitam. Não o diziam em tom marialva. Pois “os homens também choram”. Eles eram a expressão válida do adágio virado do avesso. A extinção das lágrimas não evocava uma masculinidade vívida que, naquela idade, já não tinha palco. 

Os olhos cansados não podiam ser olhos marejados. Não podiam ficar embaciados pelas lágrimas rebeldes. De tão cansados, tinham de se guardar para a lucidez necessária. Não era o passado dardejado por angústias que extinguira as lágrimas. Era a necessidade do futuro que se abreviava na contagem dos dias.

13.2.24

A esperança é constitucional (e a bola é redonda, e outros lugares-comuns que tais)

Fatboy Slim, “Sunset (Bird of Prey)”, in https://www.youtube.com/watch?v=zKEWdRPRf3I  

Agarremo-nos às saias da esperança, que temos pela frente uma boia de salvação: será empreitada difícil as coisas ficarem piores. É um direito constitucional, daqueles que não guardam a possibilidade de retrocesso. Uma forma diferente de garantir às hostes que a cidadania não será agravada por um recuo no estado de coisas em que vivem.

É melhor do que um cenário que piore o estado das coisas. Num mundo ideal (que nem nos sonhos existe), aspiramos a ficar melhor. É inerente à condição humana e atravessa séculos e séculos de História da humanidade. Hoje as expetativas estão assimiladas por baixo. O contentamento afere-se por uma bitola rasteira, sem a exigência dos grandes cometimentos. Assim se reconfigura a esperança: ao menos, que não venha daí mal maior dos muitos que nos inquietam. Bem-haja à Constituição metafórica que nos garanta este desiderato.

Dizem: a esperança nunca fez mal a ninguém. Tirando os que mergulharam nas profundezas da angústia ao serem esbofeteados pela desilusão, a esperança não é uma bigorna que se abate estrepitosamente sobre os que a ela se agarram. Os descaminhos fazem parte do caminho, mesmo que sejam desvios imprevistos ou que remodelem a rota que estava a ser transitada. A desconfiança cavalga à medida que somos vítimas de logros inventados pela indigência dos outros que nos tratam como incapazes. Nem sempre amanhece um sol radioso e também acontece o entardecer ser colonizado pela chave entediante. Os dias prosseguem, todavia.

O que nos safa, é sabermos que a esperança nem sempre se confirma. Quando se confirma, o feixe de sensações que arrepiam a pele ultrapassa as longas temporadas em que já não acreditamos no património da esperança. Nem que seja uma efemeridade. Se os papeis estivessem invertidos, e a exceção fosse o olhar protestado contra as desavenças com o mundo litigante, não conseguíamos extrair todas as vitaminas da esperança e daquilo que ela habilita. É melhor manter a rédea curta à esperança. Se nos habituarmos de mais à esperança vulgarizada, caímos no logro da sua banalização. Os direitos adquiridos só têm validade se não forem maximizados, para não perderem as qualidades intrínsecas.

Ou então, podemos arremeter pelos vastos campos dos lugares-comuns e começamos a ser atraiçoados pelo cansaço do que deixa de ter proveito. Apesar da Constituição não proibir a esperança e uma gesta de mandantes (e de concorrentes a sê-lo) exorbitarem da esperança e serem os maiores fautores das desilusões que acabam tatuadas na pele perene, passando a ser perenes tatuagens, à prova de pomadas medicinais. 

Somos vítimas daqueles que protestam, em concurso, a nossa confiança. Acabamos vítimas de nós mesmos. E contra isto não há esperança constitucional que tenha pergaminhos.

12.2.24

A gravata preta é facultativa

Idles, “Gift Horse” (live at The Tonight Show Starring Jimmy Fallon), in https://www.youtube.com/watch?v=miab9-uYra8

Os rostos enlutados disfarçam o pesar. Parecem mineiros, quando se libertam do sequestro das entranhas da terra e tudo neles é negror. Rostos destes soam a pessoas raptadas. Não sabem o que é o ócio, tão empenhadas em afocinhar na angústia. 

Arranjam pretextos para esconderem um sorriso. As viúvas que hibernaram depois da partida do consorte. Os homens reformados que ainda não aprenderam a usar o tempo livre e amaldiçoam a inatividade a que a idade (e as leis) os condenou. As mulheres desamadas que teimam ser companheiras de homens que deixaram de olhar para elas como mulheres (porque já não são homens como dantes). Os mais jovens, os que já aprenderam a pensar e estão sitiados na envenenada fortaleza da adolescência. E aqueles que repetem a insatisfação, usando uma criteriosa imaginação para a fundamentar – os que se extinguem por dentro de um bem-estar minoritário que aos seus olhos deixou de fazer sentido. Exercem um luto diferente: estão enlutados porque foram eles que deixaram o viver de lado. Têm o azar de nunca terem tido azar.

O somatório destes lutos carrega permanentemente o céu. O chumbo pesa sobre o dorso das pessoas. Já se habituaram ao ar irrespirável, são seres que se adaptam quando querem. Os funerais são uma procissão de melancolia onde o tempo é uma tortura, estende-se sacrificialmente no tempo maior que o tutela. Quando amigos que não se viam há muito tempo estão sentados à volta da mesa, o exercício de nostalgia é pungente: o que corre atrás das memórias exuberantes é a melancolia de só as poderem resgatar com a mediação das palavras. 

Se houvesse imperativo código de vestuário, a gravata preta devia constar do rol. À falta de se poder desenhar uma nuvem negramente carregada sobre os melancólicos incorrigíveis, como se a nuvem os metaforizasse, teriam de usar a gravata fúnebre. Para evitar o contágio do luto aos outros que estão longe de estarem enlutados.

9.2.24

Safe control

Bill Ryder-Jones, “This Can’t Go On”, in https://www.youtube.com/watch?v=byUoDKTVEac

(Mote: erupção de um vulcão na Islândia, e a lava que atravessa uma estrada)

Dividimos a meias (se fôssemos eruditos, diríamos “meamos”). Se o vento é democrático, e ninguém dele foge se estiver na rua, tendemos ao proveito mútuo se quisermos partilhar os custos. Se assim não for, corremos o risco de todos juntos perdermos muito mais. 

É desta previdência que falam os que não se esconderam dos problemas. Os que nunca foram de enfiar a cabeça no chão e descobriram soluções para as apoquentações que a todos afligiam. Nunca tiveram tempo para lamentar as arcadas puídas que a providência (para os que acreditam) deixa em nosso regaço, para memória futura. Eles ensinaram o cimento que elide a atomização dos indivíduos antes de haver cimento. 

Seremos gregários porque, ao sê-lo, intuímos uma proteção conjunta? Mas os misantropos, que voluntariamente se excluem do cimento da identidade, também beneficiam da proteção conjunta. Dirão, em abono deste fabrico social, que é a prova da sua superioridade. Não força a pertença, mas não excluiu do usufruto aqueles que se distanciam.

(Não resolve outra pendência: se somos gregários por oportunismo, ou por utilidade – se usarmos alguma bondade – fica provada a natureza individualista. Não somos gregários por adesão espontânea. O que destrói o mito do animal social.) 

Ficamos com o controlo das contingências, dos sobressaltos sempre entendidos como imponderáveis, dos retrocessos que desanimam? A proteção conjunta é desarmada quando atinge os seus limites. Uma catástrofe que salta por cima da previdência estabelecida, um efeito imparável da natureza, a afinal incapacidade dos recursos usados para atalhar uma emergência – tudo põe à prova as fundações que estão antes do cimento que dá corpo a uma identidade comum. Nessa altura, podem as preces acreditar no seu efeito terapêutico, mas este já não é um tempo de crenças heurísticas. 

Somos cada vez mais solipsistas. Somos mais terra a terra. A metafísica prescreveu. Pois se tudo é vontade de deus, as exuberantes e descontroladas manifestações da natureza também o são. Aquelas que terraplanam, sem contemplações, o legado da nossa obra junta.

8.2.24

O (silenciado) pé esquerdo (ou: um não arrependimento)

The Comet Is Coming, “Journey Through the Asteroid Belt” (live at Trans Musicales), in https://www.youtube.com/watch?v=Mlpg-iyiEv0

Não vejo profecias quando assisto em retrospetiva à História do futuro. Não digo que fermentem arrependimentos para apaziguamento de quem se arrepende. Não retificam o passado nem caucionam o futuro – quantas vezes um arrependimento dá origem a um arrependimento que não demora, a memória obnubilada pelo esquecimento das feridas que mal cicatrizaram? Não aumento a lente dos arrependimentos porque não habilitam a interior desencolerização. Não passam de um reflexo condicionado que restringe as dores de consciência. Arrependemo-nos e ficamos convencidos que o problema já passou. O arrependimento seria redentor.

Admito cálculos errados, opções defeituosas, equívocos entendidos com a distância do tempo, os pés trocados frequentemente, a ilusão que medra no autoconvencimento, a teimosia que impede a lucidez, a lucidez que mal se consegue espelhar. Olhar para trás pode ser lancinante, com o interminável cortejo de vieses acorrentados à malha do passado. Com todo o seu peso arqueado sobre o futuro, hipotecando-o à partida. Mesmo quando é jurado, com a solenidade urgente, que doravante não serão repetidos os erros, essa pressão é o suicídio do futuro.

É como percorrer uma estrada e as interrogações começam a abater-se sobre o seu sentido. Sente-se a hipótese do errado sentido a latejar, albergando uma inquietação tardia. Os alicerces desmoronam-se, agora. As fundações ficam à mostra, mesmo à espera de outra cofragem – a de antanho estava corroída, os seus espelhos estilhaçados pelo interior sismo que ferveu o sangue num golpe telúrico. As interrogações sistemáticas conduzem a uma resposta: o caminho percorrido estava do avesso, era o outro que devia ser arrematado. (E já não é, apenas, uma resposta eventual.) O aroma a precipício ascende desde as entranhas da terra.

A modernidade é implacável. Todos os sinais descerram a fechadura das incógnitas. Daquelas que sussurravam, discretas, ao ouvido. E das que medraram com a febre das sucessivas interrogações que sobressaltaram a memória. Implacável é a modernidade, com a sua procissão de certezas insofismáveis, pressupostos contundentes, verdades a priori, monólogos onanistas entre os pares que se igualam na criteriosa escolha dos que falam o mesmo idioma de ideias, julgamentos binários, avenidas que se estreitam na já de si estreiteza dos corredores apáticos; e os seus lídimos embaixadores: os abencerragens do futuro.

Se é para levedar arrependimentos desta linhagem, antes deixar silencioso esse esquerdo pé que teima em arrastar a sua inércia. Antes regurgitar os arrependimentos, antes que se tornem matéria-prima desavenha.

7.2.24

O osso do avesso

Groove Armada, “My Friend”, in https://www.youtube.com/watch?v=JxohJX9ElpE

Não era de pontes que o medo era feito. Também não era de fantasmas, que os fantasmas não passam de fantasmas. Que ficassem para memórias vindouras, aquelas que entram em ebulição em águas-furtadas, os exorcismos que não pedem tábua rasa. O olhar não estremecia ao ser assaltado por sismos ou vulcões saídos do sono. Por que haveriam de perder o sono por causa de vultos incorpóreos?

As pontes traduziam as diferenças, como se fossem a língua-franca de que precisavam os que não conseguiam falar entre si. Os vitrais de igrejas devolviam as faces rosáceas, como se estivessem inebriadas pelo encantamento de poderem viver. Não se construa a metáfora da dívida eterna pelas vidas que foram dadas a viver. As pessoas é que são titulares da matéria vivente, não devem nada. Se fossem atropelados os pesadelos, talvez não franzissem o sobrolho, talvez não amadurecessem na decadência prometida como sinal de efemeridade. Não era isso que importava: podiam ser acusadas de frivolidade, mas estavam de atalaia às coisas comezinhas. A filosofia ficava para os que se demoram nos interstícios do pensamento.

Se não fossem atribuídas as dúvidas aos filósofos, os demais não teriam cabimento no sortilégio do mundo. Os filósofos fazem um favor às outras pessoas. Desoneradas do pensamento inquisitivo, podem espalhar os corpos indolentes no passo vagaroso. Esse devia ser o direito fundamental mais fundamental. As abelhas-mestras não conspiram contra os demais; deixam-nos a fazer o papel de obreiros, mas outorgam um direito (quase divino, caucionado) ao repouso. 

O que as pessoas querem é serem os autores das suas próprias ovações. Querem morder no calcário do futuro para não perderem o paradeiro do presente. Recusam miragens sem sedimento. Recusam os formulários vagos onde se ajuramentam paraísos que encarnam mentiras (sem que delas tomem conhecimento). As pessoas precisam de ir ao osso e virá-lo do avesso. Sem a consciência social a adejar sobre elas com o bafo nauseabundo dos cosmonautas do devir, sem as mãos armadilhadas por frutos consagrados à podridão, sem mares que se esvaziam com o torpor dos tempos sem pátria visível. 

Precisam do osso do avesso, para saberem que também são o seu lado visível virado ao contrário.

6.2.24

Post Scriptum: a colonização da cultura pela política

The Smile, “I Quit”, in https://www.youtube.com/watch?v=j5pxS3QNydw

Mote: “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa”, de Sara Barros Leitão

Não sei se é das dores da atualidade, mas manifestações de arte politicamente empenhadas estão a crescer. Os mais atentos dirão que é por causa dos ventos ameaçadores que sopram de muitas latitudes, à medida que a extrema-direita vai tomando posições em vários países, eleição após eleição. Estabelecido o medo do fascismo (para fazer a vontade aos que agitam o fantasma), é preciso acená-lo com veemência, combatê-lo com os meios que estejam ao alcance de quem está empenhado em barrar o caminho aos radicais. A arte está a ser um desses meios, cada vez mais.

Tenho um problema com a politização das artes (ou as artes politizadas, ainda está por estabelecer a causalidade): as artes ficam à mercê da política. Correndo o risco de serem contaminadas com a visão sempre parcial da política, ou de quem esgrime um determinado ponto de vista político. A política está à mercê do subjetivismo, da mesma maneira que a arte tem muito de subjetivismo no diálogo entre o criador e o destinatário. Este par de subjetivismos faz quadrar a arte com a política na perfeição. Dir-se-ia, em abono da interseção entre arte e política, que os cultores da ciência política não se cansam de ensinar que tudo é político, até o gesto mais banal. Ora, a arte está nos antípodas do banal, reforçando o argumento dos que defendem a politização das artes ou as artes politizadas.

O problema com a as artes permeáveis à política é o viés que traduz esse entrecruzar. Não defendo restrições à liberdade de expressão; é por defender a soberania da liberdade de expressão que assisto com desconforto à politização das artes. Essa politização é uma estrada de sentido único. As artes podem ser politizadas desde que o compromisso do artista esteja em linha com a retórica dos que assistem, assustados, ao cavalgar dos radicais de direita com a cumplicidade de cada vez mais eleitores. Ando atento à vida cultural e não conheço manifestações artísticas que se alistem na contracorrente. 

Não estou a propor que os “fascistas” subam a palco, ou exponham nas galerias de arte, ou consigam convencer editores, ou cantem pelas salas de Norte a Sul uma espécie de música de desintervenção, ou concorram a subsídios do Instituto do Cinema e Audiovisual. Respeitando um critério que trata todos por igual, ficaria tão desconfortável com essa hipótese quanto fico com o monopólio cultural a que assistimos, pois tratar-se-ia, na mesma, de politizar as artes. Mas as opções de escolha seria ampliadas, dando proteção a um princípio concorrencial que não é do agrado dos que monopolizam o atual estado de coisas na politização da cultura. 

Poder-se-ia testar uma hipótese que não fosse tão antitética e radical: podermos assistir a manifestações de arte que apenas desmontassem o maniqueísmo do atual establishment artístico. Expressões de arte cuja gramática seria denunciar a soberba intelectual e a hipocrisia dos artistas que hoje politizam as artes ou dão o flanco a artes politizadas. O propósito seria assinalar as incongruências desses artistas, de como a sua agenda disfarça totalitarismos de outra cepa. Corro o risco de vaticinar que os artistas que subissem a palco para denunciar a atual tendência das artes politizadas seriam apostrofados de “fascistas” por ousarem desmontar imperativos categóricos, sob o disfarce (ou o pretexto) da arte. Mesmo que não carreguem a tiracolo qualquer laivo de “fascismo”, seriam automaticamente “fascistas” (pois quem não está connosco, está contra nós).

Tanto me incomoda a arte politizada à esquerda como à direita. Porque aprecio as artes como artes, sem o viés da política, sem ter de aturar artistas que, a páginas tantas, já não sei se são artistas ou apenas propagandistas, ou agitadores comprometidos, autênticos panfletários disfarçados de artistas. Apesar de tudo se reconduzir à política, até o gesto mais banal. O que me desagrada, enquanto apreciador das artes, é a sua colonização pela política e que se banalizem. Temo que, ao agitarem fantasmas, estas artes politicamente empenhadas apenas contribuam para o medrar desses fantasmas, num gesto que tem efeitos contraproducentes. 

A arte não precisa de militâncias. Perde-se na nebulosa das militâncias.  Empenha-se na politização, como se fosse mais uma arma para o arsenal usado para desmembrar os fantasmas que não estavam definitivamente sepultados. Pelo caminho, perde a linhagem de arte. Receio que, um dia destes, seja difícil distinguir entre arte e política. Com a má qualidade da política contemporânea, podia ser fatal para a arte, ocorrendo um nivelamento por baixo. O que seria de lamentar: a arte que passe o crivo do anonimato é uma dádiva para o público.

5.2.24

Miragens

Otis Redding, “(Sittin’ On) The Dock of the Bay”, in https://www.youtube.com/watch?v=rTVjnBo96Ug

O lenço deixou de estar no pescoço, arrancado pelo vento que se empresta ao Inverno. Os dedos gelados ajeitam a gola do casaco, o lenço perdeu-se no abismo limítrofe. O céu de chumbo reúne o pressentimento de chuva. Nem assim demove a intrepidez que esbofeteou a rotina dos dias iguais. Aquele era um dia diferente, o exílio da cidade. 

Os olhos escurecem, rimando com o céu mais plúmbeo. As pedras ao acaso estão embebidas em humidade, talvez tenha chovido na véspera de chegar ao miradouro. Há musgo por todo o lado, a escassa vegetação (com uns arbustos rarefeitos) resiste aos desfavores do tempo que ali é quase sempre alapoado. As palavras emudeceram. Decidiram que o silêncio é a homenagem à mirífica paisagem. 

Já na cidade, voltou ao golpe de vento que roubou o lenço do pescoço. Parecia uma vingança, o vento a uivar, iracundo, contra a displicência de quem desafiava o tempo que se agitava desde as entranhas. Já se perdera as contas ao tempo que o miradouro não conhecia uma alma. Em vez disso, uns vultos sem identidade visível adejavam. Só os audazes se comprometem perante a hipótese de fruição vingativa do miradouro, em conspiração combinada. 

Não importava que tivesse sido vingança do vento e do miradouro. O tempo não estava de feição para a comunhão com aquele lugar. Mas a meteorologia não pintou o mapa verde com o vermelho de uma catástrofe para dissuadir as pessoas. Nada disto tinha importância. Só queria saber das manhãs, dos frutos maduros que iam espontaneamente à boca, sem que as mãos tremessem, agora que beneficiavam do agasalho da casa. 

Às outras miragens, não havia chapéus por tirar. Sem a sela da manhã, caminhava ao longo do dia como se uma represa tivesse suspendido o tempo. Dessas margens, via-se uma miragem que se confundia com um já desabitante do mundo. 

Soube depois que as miragens não se transfiguram em cadáveres. Queria combinar com elas o sossego da alma.

2.2.24

Os músicos de intervenção teriam uma crise de criatividade se o fantasma do fascismo fosse erradicado?

Mini Drunfes, “Fazer a Revolução”, in https://www.youtube.com/watch?v=IqU8GRb8VNU

Era como se (afinal) os deuses existissem, até para os profundamente ateus: uma divindade arrematou a sua diligência e, para fazer jus à bondade que dizem ser inata, erradicou os fascistas. As decisões dos deuses não são impugnáveis. E não prescrevem, dada a sua natureza divina. Esta neoescolástica virou-se a favor do mundo, dos oprimidos e dos perseguidos pela sanha dos fascistas: não é um genocídio, porque as divindades não cometem genocídios (praticam a justiça divina) e de um genocídio que erradica potenciais genocidas não se pode dizer que é um genocídio.

Sem fascistas não há fascismo – pensámos todos, num momento coletivo de exultação. Durante os dias de embriaguez coletiva, andámos nas nuvens. Já não tínhamos medo que um fascista estivesse ao dobrar da esquina, preparado para nos importunar, preparado para a delação. Já não tínhamos medo que o fascista chegasse ao poder através de eleições, essa degenerescência burguesa que quase abriu os governos aos fascistas. Literalmente: andávamos nas nuvens. Já não tínhamos de recear pelo esbulho dos costumes, pelo policiamento dos pretores da moralidade arcaica, sempre ávidos de julgamentos sem contraditório. Nas nuvens, era assim que estávamos, dias e dias a fio. Tanto que só depois é que demos conta que a veia criativa se tinha esgotado com a extinção do fascismo.

Começamos a descer à terra. Continuávamos imensamente felizes pelo sumiço do fascismo e dos fascistas. Mas o que seria de nós, músicos de intervenção, agora que o fascismo que nos mobilizava para arrebatadas estrofes e inspiradas composições musicais tinha sido erradicado? Continuaríamos a intervir sobre o quê, se até os moderados foram acantonados num redil onde, em virtude da sua complacência com os fascistas, os seus direitos de cidadania foram amputados (em julgamento sumário – e sem contraditório)? É que até o neoliberalismo prescreveu, por decisão divina.

Ao início, alguns de nós, os mais otimistas, ou aqueles que ainda estavam sob efeitos lisérgicos, desdramatizaram a angústia que acabara de nascer. Na pior das hipóteses – pressentimos – seríamos autores de composições musicais inspiradas no longo e funesto passo fascista. Continuaríamos a exorcizar o fantasma do fascismo, mesmo sabendo que o fascismo tinha sido dado com o extinto. A antropologia do fascismo teria de ser preservada para memória futura. Seria a válvula de escape para a criação artística vindoura. Manter vivo o estigma do fascismo, para não haver quem no futuro reavive a sua chama.

Algum tempo depois, muitos de nós estávamos inconsoláveis. Não tínhamos verve. A desinspiração era gémea da abolição do fascismo. Secara a veia que habilitava o arrebatamento artístico. O diagnóstico era dilacerante: nem o mundo perfeito em que agora vivíamos conseguia ser a musa inspiradora. Não nos conseguíamos excitar – artisticamente falando – com o palco idílico que um cortejo de divindades nos ofereceu. Demos conta que só conseguíamos criar arte se estivéssemos acossados por vultos que esbracejassem a ameaça do fascismo – ou que, mediados pelos excessos de interpretação a que éramos dados, assim fossem por nós ajuizados. 

O fascismo fora atirado borda fora e a nossa inspiração também. Já não conseguíamos ser intérpretes das maleitas sociais; não havia oprimidos que tornávamos protagonistas de estrofes heroicas; para mal da nossa desinspiração, o mundo era um exemplo do bondade e felicidade geral, a pobreza tinha sido banida com a redistribuição das fortunas pornográficas, o capitalismo acompanhou o fascismo, entrando no seu estertor, já ninguém usurpava os demais com o vício da propriedade (outra aleivosia da burguesia decadente). 

Perdêramos o objeto da intervenção. Perdemos os sujeitos qualificados que motivam a intervenção artística. A nossa arte ficou órfã, ou nós ficámos órfãos da extinção do fascismo (um paradoxo). Nunca mais conseguiríamos  criar música, já não era imperativo intervir sobre as iniquidades que sobressaltavam o mundo e nos davam razão de existir (artisticamente falando), pois elas foram extintas com a erradicação do fascismo.

Tínhamos, afinal, saudades do fascismo – mas não digam a ninguém, para não nos levarem a mal.

1.2.24

Bodo aos ricos (música de desintervenção, outra vez)

Cara de Espelho, “Político Antropófago”, in https://www.youtube.com/watch?v=U13tItb5CQU

Vem aí o fascismo. O povo ignaro não aprendeu com o passado, ou não sabe de História. E os mais novos? Só por desconhecimento de causa é que não apreciam “conquistas de abril” e são seduzidos pelo fascista emergente que quer implodir a democracia a partir de dentro. Os capitalistas gulosos esfregam as mãos de contentamento: os fascistas sempre foram cúmplices do grande capital, espezinhando os direitos dos trabalhadores. Está-se a montar a tempestade perfeita: os fascistas vão emagrecer as liberdades, para depois as limitarem e, depois ainda, acabarem com muitas delas. A opressão dos mais fracos volta à ordem do dia. Vem aí uma maré gigantesca de retrocesso social. A democracia está por um fio. 

O fascismo vem aí. Vamos denunciar o fascismo, que já deixou de ser latente e se tornou uma ameaça que esbraceja à vista desarmada. Sob o pesadelo desta ameaça, os democratas, os “verdadeiros democratas”, devem um levantamento em honra da democracia. Não se espere que sejam os moderados a cortar a jugular dos fascistas emergentes. Os paninhos quentes são a ignição de uma autofagia militante. Quando os moderados acordarem, já estão encomendados ao cárcere ou ao exílio. Nessa altura, sobrarão os fascistas.

Vem, o fascismo, na dobra da esquina. É preciso mobilizar as forças democráticas nas suas diversas manifestações, para que possam isolar o fascismo, devolvendo-o à página negra da História, nacional e mundial, às estantes das péssimas curiosidades arqueológicas. Se os “verdadeiros democratas” não se pronunciarem, se não esventrarem o fascismo com o poder da palavra certa e da argumentação irrebatível, podem não ir a tempo de se salvarem, dos nos salvarem, do fascismo hediondo. As vozes fundas nunca serão muitas para contar a verdade sobre os fascistas que querem extinguir a democracia. O silêncio será cúmplice dos fascistas. Os moderados, que se dizem democratas (sem o serem autenticamente), têm uma oportunidade única: ou engrossam o coro contra o fascismo e pegam na arma da denúncia, ou serão julgados no mesmo tribunal que condenará os fascistas depostos.

É preciso contar a verdade sobre o fascismo. Honremos a liberdade, como nas saudosamente defuntas soviéticas repúblicas. Protejamos os que se prestam ao papel de oprimidos: já é um fado extenuante: oprimidos durante o fascismo, ainda oprimidos durante o longo consulado “neoliberal”, prometidos outra vez à opressão sob o jugo dos fascistas promitentes. Falemos as horas todas, os dias todos, o tempo sem exaustão, usemos a voz contundente. Não capitulemos aos que se enfaixam na sotaina de moralistas e advertem sobre os efeitos contraproducentes de tamanha vozearia (dizem, convencidos da sua razão, que elevar os fascistas ao pináculo só lhes traz mais votantes – mas eles estão errados, não são “verdadeiros democratas”).

Ou então, sopremos a poeira da música de intervenção e usemo-la como arma de destruição maciça dos fascistas que se contagiam como uma praga. Na qualidade de músicos de intervenção, entreguemo-nos ao pesadelo que não queremos, mas que parece corresponder ao nosso íntimo desejo: pois se não houvesse fascistas, e se o anátema da opressão dos desfavorecidos não pesasse tanto, numa vergonhosa recuperação do passado, como é que os músicos de intervenção intervinham? 

(Continua)