21.2.24

A absolvição prometida (toque de Midas)

Nell & the Flaming Lips, “Into My Arms”, in https://www.youtube.com/watch?v=J64XlzOROtI

Assustavam-nos com o peso hediondo do pecado. Do pecado que não era apenas um distanciamento dos mandamentos da religião. Pois o pecado reivindica a culpa e muitos não sabem como transportá-la sem terem de suplicar por redenção. Acossados, uns procuravam absolvição na consciência de um padre. Outros, prometiam que não repetiam o pecado, sabendo que apenas o estavam a adiar. Ninguém lhes disse que o pecado não existe. 

Poucos havia a negarem provimento à ideia de pecado. Estes poucos não admitiam que juízes de fora revistassem os interstícios da consciência para encontrarem vestígios de pecados. Não admitiam, depois de participados os pecados, que fossem sujeitos a uma punição. Como se o castigo apagasse o pecado, ou como se fosse a compensação que se impunha para fermentar o arrependimento. A culpa exige desculpa. E se vier ostentada com a arrogância de quem se investe neste poder, espalha os estilhaços da humilhação. 

Os cânones ensinam a indeclinável propensão para vivermos em conjunto. Somos gregários e não podemos recusar essa condição. Não podemos recusar as consequências dessa condição: não vivemos fechados em conchas onde só existe o eu, as nossas ações são motivadas ou condicionadas pelos outros, as nossas ações podem ter repercussões nos outros. Damos constantemente o flanco ao sangue coletivo que ferve o cimento que torna o grupo coeso. Não podemos afastar os olhos que se abatem sobre o eu que atua: ninguém é uma ilha.

Os exames de consciência deviam ser momentos de exclusiva competência da intimidade de cada um. Só devia ser ativada a consciência que, por definição, não sai dos limites do eu. Se não tivéssemos deixado adulterar o estado de coisas, não consentíamos que a consciência se expusesse aos exteriores julgamentos de valor. Não admitíamos que esgrimissem contra nós o capital de pecados que nos situa numa subcondição. Não nos deixaríamos sitiar pelos outros que se exalçam ao direito de julgar as vidas que estão por fora deles. 

O toque de Midas é a interior demanda pela absolvição. Quando o exame de consciência determina que a redenção se impõe para a consciência fazer as pazes interiores. De outro modo, as sombras do “pecado” (e as aspas vêm de propósito) persistem como um vulto que assombra o tempo visível (ou não). Quem apura a linhagem do pecado é o próprio que se sujeita ao autojulgamento. 

É o único julgamento em causa própria com franquia.

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