The Smile, “I Quit”, in https://www.youtube.com/watch?v=j5pxS3QNydw
Mote: “Monólogo de uma mulher chamada Maria com a sua patroa”, de Sara Barros Leitão
Não sei se é das dores da atualidade, mas manifestações de arte politicamente empenhadas estão a crescer. Os mais atentos dirão que é por causa dos ventos ameaçadores que sopram de muitas latitudes, à medida que a extrema-direita vai tomando posições em vários países, eleição após eleição. Estabelecido o medo do fascismo (para fazer a vontade aos que agitam o fantasma), é preciso acená-lo com veemência, combatê-lo com os meios que estejam ao alcance de quem está empenhado em barrar o caminho aos radicais. A arte está a ser um desses meios, cada vez mais.
Tenho um problema com a politização das artes (ou as artes politizadas, ainda está por estabelecer a causalidade): as artes ficam à mercê da política. Correndo o risco de serem contaminadas com a visão sempre parcial da política, ou de quem esgrime um determinado ponto de vista político. A política está à mercê do subjetivismo, da mesma maneira que a arte tem muito de subjetivismo no diálogo entre o criador e o destinatário. Este par de subjetivismos faz quadrar a arte com a política na perfeição. Dir-se-ia, em abono da interseção entre arte e política, que os cultores da ciência política não se cansam de ensinar que tudo é político, até o gesto mais banal. Ora, a arte está nos antípodas do banal, reforçando o argumento dos que defendem a politização das artes ou as artes politizadas.
O problema com a as artes permeáveis à política é o viés que traduz esse entrecruzar. Não defendo restrições à liberdade de expressão; é por defender a soberania da liberdade de expressão que assisto com desconforto à politização das artes. Essa politização é uma estrada de sentido único. As artes podem ser politizadas desde que o compromisso do artista esteja em linha com a retórica dos que assistem, assustados, ao cavalgar dos radicais de direita com a cumplicidade de cada vez mais eleitores. Ando atento à vida cultural e não conheço manifestações artísticas que se alistem na contracorrente.
Não estou a propor que os “fascistas” subam a palco, ou exponham nas galerias de arte, ou consigam convencer editores, ou cantem pelas salas de Norte a Sul uma espécie de música de desintervenção, ou concorram a subsídios do Instituto do Cinema e Audiovisual. Respeitando um critério que trata todos por igual, ficaria tão desconfortável com essa hipótese quanto fico com o monopólio cultural a que assistimos, pois tratar-se-ia, na mesma, de politizar as artes. Mas as opções de escolha seria ampliadas, dando proteção a um princípio concorrencial que não é do agrado dos que monopolizam o atual estado de coisas na politização da cultura.
Poder-se-ia testar uma hipótese que não fosse tão antitética e radical: podermos assistir a manifestações de arte que apenas desmontassem o maniqueísmo do atual establishment artístico. Expressões de arte cuja gramática seria denunciar a soberba intelectual e a hipocrisia dos artistas que hoje politizam as artes ou dão o flanco a artes politizadas. O propósito seria assinalar as incongruências desses artistas, de como a sua agenda disfarça totalitarismos de outra cepa. Corro o risco de vaticinar que os artistas que subissem a palco para denunciar a atual tendência das artes politizadas seriam apostrofados de “fascistas” por ousarem desmontar imperativos categóricos, sob o disfarce (ou o pretexto) da arte. Mesmo que não carreguem a tiracolo qualquer laivo de “fascismo”, seriam automaticamente “fascistas” (pois quem não está connosco, está contra nós).
Tanto me incomoda a arte politizada à esquerda como à direita. Porque aprecio as artes como artes, sem o viés da política, sem ter de aturar artistas que, a páginas tantas, já não sei se são artistas ou apenas propagandistas, ou agitadores comprometidos, autênticos panfletários disfarçados de artistas. Apesar de tudo se reconduzir à política, até o gesto mais banal. O que me desagrada, enquanto apreciador das artes, é a sua colonização pela política e que se banalizem. Temo que, ao agitarem fantasmas, estas artes politicamente empenhadas apenas contribuam para o medrar desses fantasmas, num gesto que tem efeitos contraproducentes.
A arte não precisa de militâncias. Perde-se na nebulosa das militâncias. Empenha-se na politização, como se fosse mais uma arma para o arsenal usado para desmembrar os fantasmas que não estavam definitivamente sepultados. Pelo caminho, perde a linhagem de arte. Receio que, um dia destes, seja difícil distinguir entre arte e política. Com a má qualidade da política contemporânea, podia ser fatal para a arte, ocorrendo um nivelamento por baixo. O que seria de lamentar: a arte que passe o crivo do anonimato é uma dádiva para o público.
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