26.2.24

Aparentemente (clepsidras e palimpsestos)

The Chemical Brothers, “Sometimes I Feel So Deserted”, in https://www.youtube.com/watch?v=saZVNLMMmmo

Garrafas vazias que enchem o mar: aparentemente, terá sido um marinheiro, entediado com os dias sucessivos de mar, a atirá-las borda fora. Desenganam-se os que as apanharem depois de devolvidas à praia. Estão vazias. 

Mas podiam não estar vazias. Ao abri-las, os curiosos tiravam um papel corroído pela humidade. Aparentemente, uma história contada no papel. As suas rugas e o amarelecido estado impedem conclusões. Aparentemente, a garrafa contém uma mensagem. Mas está ilegível. Para todos os efeitos, a mensagem foi extinta.

Sem capitularem, os argonautas da praia, que a esquadrinham à procura de tesouros (ou de simples seixos que depois não vão ornamentar coisa alguma), examinam meticulosamente as garrafas como fossem cientistas. Como se as estivessem a autopsiar, à procura de outros sinais que possam exteriorizar uma mensagem. Há vestígios que aparentemente podem ter um significado. Mas não são peritos em hieróglifos ou linguagem cifrada. 

Aparentemente, tudo tem de conter mensagem. São as entrelinhas e o subtexto. As figuras de estilo que atiram outros significados para cima da mesa, cultivando a hermenêutica criativa dos exegetas. Parece uma batalha de interpretações. Uns lunáticos juram que decifraram um sentido todavia ininteligível. Vestem de roupagens improváveis os espaços em branco, como se houvesse espaços ocupados (não há). Fazem palavras cruzadas sem terem a grelha de análise. Depois de tão dissecadas, as garrafas extraídas ao areal já não servem nem para despojos. Talvez acabem numa qualquer instalação artística.

A exuberância de significados forjados chegara ao limite. Exaustos, anuem que nem tudo tem de conter uma mensagem. A ausência de mensagem já é uma mensagem: alguém que queria libertar o seu silêncio e que houvesse, milhares de milhas náuticas depois, quem fosse testemunha desse pungente silenciar. 

Às vezes, as palavras não são precisas. Perdem-se na sua contumácia, coabitando com o medo dos que desconfiam que vão ser banidas. Aparentemente, não têm razão. Ninguém tem razão, para bem da razão.

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