8.2.24

O (silenciado) pé esquerdo (ou: um não arrependimento)

The Comet Is Coming, “Journey Through the Asteroid Belt” (live at Trans Musicales), in https://www.youtube.com/watch?v=Mlpg-iyiEv0

Não vejo profecias quando assisto em retrospetiva à História do futuro. Não digo que fermentem arrependimentos para apaziguamento de quem se arrepende. Não retificam o passado nem caucionam o futuro – quantas vezes um arrependimento dá origem a um arrependimento que não demora, a memória obnubilada pelo esquecimento das feridas que mal cicatrizaram? Não aumento a lente dos arrependimentos porque não habilitam a interior desencolerização. Não passam de um reflexo condicionado que restringe as dores de consciência. Arrependemo-nos e ficamos convencidos que o problema já passou. O arrependimento seria redentor.

Admito cálculos errados, opções defeituosas, equívocos entendidos com a distância do tempo, os pés trocados frequentemente, a ilusão que medra no autoconvencimento, a teimosia que impede a lucidez, a lucidez que mal se consegue espelhar. Olhar para trás pode ser lancinante, com o interminável cortejo de vieses acorrentados à malha do passado. Com todo o seu peso arqueado sobre o futuro, hipotecando-o à partida. Mesmo quando é jurado, com a solenidade urgente, que doravante não serão repetidos os erros, essa pressão é o suicídio do futuro.

É como percorrer uma estrada e as interrogações começam a abater-se sobre o seu sentido. Sente-se a hipótese do errado sentido a latejar, albergando uma inquietação tardia. Os alicerces desmoronam-se, agora. As fundações ficam à mostra, mesmo à espera de outra cofragem – a de antanho estava corroída, os seus espelhos estilhaçados pelo interior sismo que ferveu o sangue num golpe telúrico. As interrogações sistemáticas conduzem a uma resposta: o caminho percorrido estava do avesso, era o outro que devia ser arrematado. (E já não é, apenas, uma resposta eventual.) O aroma a precipício ascende desde as entranhas da terra.

A modernidade é implacável. Todos os sinais descerram a fechadura das incógnitas. Daquelas que sussurravam, discretas, ao ouvido. E das que medraram com a febre das sucessivas interrogações que sobressaltaram a memória. Implacável é a modernidade, com a sua procissão de certezas insofismáveis, pressupostos contundentes, verdades a priori, monólogos onanistas entre os pares que se igualam na criteriosa escolha dos que falam o mesmo idioma de ideias, julgamentos binários, avenidas que se estreitam na já de si estreiteza dos corredores apáticos; e os seus lídimos embaixadores: os abencerragens do futuro.

Se é para levedar arrependimentos desta linhagem, antes deixar silencioso esse esquerdo pé que teima em arrastar a sua inércia. Antes regurgitar os arrependimentos, antes que se tornem matéria-prima desavenha.

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