16.2.24

Príncipe imperfeito

Massive Attack, “Paradise Circus”, in https://www.youtube.com/watch?v=Mfog2LP4oTY

Voltava ao lugar do crime. O crime por pessoa incerta. Mas o crime existira. Voltava. Mas não para confirmar o provérbio – o criminoso volta ao lugar do crime, o raio do estúpido. Entre as muitas dúvidas que, todavia, não o sobressaltavam, podia jurar com o selo do sangue derramado, se preciso fosse, que não tinha sido o autor daquele crime.

E lembrava-se de um atrevimento trivial do povo miúdo: a mórbida propensão para estacionar o automóvel, ou para se desviar da sua função pedestre, espreitando um acidente só para confirmar o mau estado da vítima. Podia-se falar de uma metáfora também ela mórbida: o povo miúdo, que não consegue domesticar a curiosidade pelo sangue alheio, trata-se como o criminoso que volta ao lugar do crime, sem ter havido crime e sem ser, ele próprio, o criminoso.

Às vezes, tinha de saber as sensações que o percorriam nestes lugares emoldurados pela tragédia. Uma estação de comboios que testemunhou uma carnificina, um memorial que eterniza as vidas extintas pela covardia alheia, o mar imenso que engoliu navios e marinheiros indefesos, as alminhas que povoam as estradas nacionais para que ninguém esqueça que pode ser vítima de acidentes de viação – enfim, os cemitérios, que são sempre o sepulcro coletivo que aviva a tragédia que é a morte. Sem que a morbidez contaminasse esta pulsão.

A aspiração da perfeição não é um presente envenenado. A participação não é distintiva da confissão imediata das limitações. Entra-se numa empreitada com o desejo de a arrematar sem arestas vivas, no máximo que a perfeição admite pela constelação de possibilidades. O desfecho pode não se compatível com essa aspiração. Ora por fragilidades dos próprios atores. Ora por erros de julgamento – a errada aferição das circunstâncias, o errado sopesar dos outros, pois deles também depende a arrematação da empreitada, os imprevistos, ou apenas a má escolha dos meios para os fins. 

Os erros integram o sangue que nos corre nas veias. E podemos ser príncipes na mesma: príncipes por dentro dos principados que habitamos, conscientes das muitas fragilidades que arroteiam um mar de imperfeições de que somos curadores. Essas imperfeições são o estado mais próximo da perfeição a que podemos ambicionar. 

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