23.2.24

Levamo-nos muito a sério e isso faz mal à tensão arterial (remake)

U2, “Gloria”, in https://www.youtube.com/watch?v=ybYgP48X2DY

Há pertenças que tornam as pessoas intolerantes. Começa a ser insuportável, porque a intolerância de uns ateia a intolerância de outros, numa tremenda bola de neve que avança imparável pela montanha abaixo. Pertenças variegadas que acicatam os que as elas juram fidelidade além-canina. As almas abespinhadas por um motejo ou por uma graçola mandam dizer que não se brinca com coisas sérias – eis a herança tardia de um certo ambiente salazarento que nunca foi exorcizado da sala comum que habitamos.

Os ofendidos usam linguagem dura para se queixarem dos que ultrajaram a inatacável honra da entidade a que juraram fidelidade. Não chegam a perceber que, provavelmente, os que acusam de afronta têm de estar preparados para que lhes dediquem o mesmo tratamento que deu origem a exacerbados pedidos de defesa da honra. Se todos não nos levássemos demasiado a sério, encaixaríamos melhor o escárnio que nos é dedicado. Sem ser necessário procurar vingança, saberíamos que os que usam um veneno para nos atacarem podem ser vítimas desse veneno no dia seguinte. Temos de estar preparados para sermos alvos preferenciais da fina ironia dos outros. Ou vamos colocar uma mordaça na boca deles, só para a nossa honra não ficar ofendida?

O medo que tenho se a resposta a esta interrogação for afirmativa, é que estejamos a caminhar para a inversão de valores. Cada um trata da sua honra conforme lhe apraz. Na escala de valores, a honra de alguém não pode vir antes da liberdade de expressão de todos os outros. Corremos o risco de castrar a liberdade e de, sem darmos conta, à conta das pequeninas idiossincrasias que não admitem desveneração, estarmos no abismo da tirania por outros meios. Proibidos de falar sobre os outros, ensimesmamos. Pode ser a receita perfeita para a misantropia geral.

Não nos podemos levar tão a sério. Não somos perfeitos e haverá quem se irrite connosco por razões que podem ser válidas para o irritadiço. Nem tem validade o preceito que convoca o respeito pelos outros para os outros nos poderem respeitar: não está em causa o respeito, está em causa a ironia com que os outros podem olhar para nós e a nós assistir o poder de encaixe para não sermos algozes da liberdade de expressão dos outros. Se quisermos, podemos usar da mesma moeda, que o cavalheirismo olímpico saiu de moda, e podemos responder: “olha quem fala”, seguido de um rosário de escárnio em resposta ao escárnio. E ninguém fica mal, ninguém deve levar a mal.

Em jeito de (des)exemplo, exibo o muito católico gesto de dar a outra face antes do tempo (pois não li, nem ouvi, retratos cínicos a mim dedicados). De mim podem dizer que tenho escrita gongórica;  que tenho medo da velhice; que fujo de uma imagem que, todavia, é a que transpira para o exterior; que abuso dos valores que devo cultivar; que sou refém da maldita coerência; que tenho pouca paciência para as angústias alheias; que exagero na exigência com os outros (exteriorizando uma certa intolerância); que sou refém da autodisciplina que me amordaça. E outras coisas que tais, que escapam à autoavaliação.

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