5.2.24

Miragens

Otis Redding, “(Sittin’ On) The Dock of the Bay”, in https://www.youtube.com/watch?v=rTVjnBo96Ug

O lenço deixou de estar no pescoço, arrancado pelo vento que se empresta ao Inverno. Os dedos gelados ajeitam a gola do casaco, o lenço perdeu-se no abismo limítrofe. O céu de chumbo reúne o pressentimento de chuva. Nem assim demove a intrepidez que esbofeteou a rotina dos dias iguais. Aquele era um dia diferente, o exílio da cidade. 

Os olhos escurecem, rimando com o céu mais plúmbeo. As pedras ao acaso estão embebidas em humidade, talvez tenha chovido na véspera de chegar ao miradouro. Há musgo por todo o lado, a escassa vegetação (com uns arbustos rarefeitos) resiste aos desfavores do tempo que ali é quase sempre alapoado. As palavras emudeceram. Decidiram que o silêncio é a homenagem à mirífica paisagem. 

Já na cidade, voltou ao golpe de vento que roubou o lenço do pescoço. Parecia uma vingança, o vento a uivar, iracundo, contra a displicência de quem desafiava o tempo que se agitava desde as entranhas. Já se perdera as contas ao tempo que o miradouro não conhecia uma alma. Em vez disso, uns vultos sem identidade visível adejavam. Só os audazes se comprometem perante a hipótese de fruição vingativa do miradouro, em conspiração combinada. 

Não importava que tivesse sido vingança do vento e do miradouro. O tempo não estava de feição para a comunhão com aquele lugar. Mas a meteorologia não pintou o mapa verde com o vermelho de uma catástrofe para dissuadir as pessoas. Nada disto tinha importância. Só queria saber das manhãs, dos frutos maduros que iam espontaneamente à boca, sem que as mãos tremessem, agora que beneficiavam do agasalho da casa. 

Às outras miragens, não havia chapéus por tirar. Sem a sela da manhã, caminhava ao longo do dia como se uma represa tivesse suspendido o tempo. Dessas margens, via-se uma miragem que se confundia com um já desabitante do mundo. 

Soube depois que as miragens não se transfiguram em cadáveres. Queria combinar com elas o sossego da alma.

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