2.2.24

Os músicos de intervenção teriam uma crise de criatividade se o fantasma do fascismo fosse erradicado?

Mini Drunfes, “Fazer a Revolução”, in https://www.youtube.com/watch?v=IqU8GRb8VNU

Era como se (afinal) os deuses existissem, até para os profundamente ateus: uma divindade arrematou a sua diligência e, para fazer jus à bondade que dizem ser inata, erradicou os fascistas. As decisões dos deuses não são impugnáveis. E não prescrevem, dada a sua natureza divina. Esta neoescolástica virou-se a favor do mundo, dos oprimidos e dos perseguidos pela sanha dos fascistas: não é um genocídio, porque as divindades não cometem genocídios (praticam a justiça divina) e de um genocídio que erradica potenciais genocidas não se pode dizer que é um genocídio.

Sem fascistas não há fascismo – pensámos todos, num momento coletivo de exultação. Durante os dias de embriaguez coletiva, andámos nas nuvens. Já não tínhamos medo que um fascista estivesse ao dobrar da esquina, preparado para nos importunar, preparado para a delação. Já não tínhamos medo que o fascista chegasse ao poder através de eleições, essa degenerescência burguesa que quase abriu os governos aos fascistas. Literalmente: andávamos nas nuvens. Já não tínhamos de recear pelo esbulho dos costumes, pelo policiamento dos pretores da moralidade arcaica, sempre ávidos de julgamentos sem contraditório. Nas nuvens, era assim que estávamos, dias e dias a fio. Tanto que só depois é que demos conta que a veia criativa se tinha esgotado com a extinção do fascismo.

Começamos a descer à terra. Continuávamos imensamente felizes pelo sumiço do fascismo e dos fascistas. Mas o que seria de nós, músicos de intervenção, agora que o fascismo que nos mobilizava para arrebatadas estrofes e inspiradas composições musicais tinha sido erradicado? Continuaríamos a intervir sobre o quê, se até os moderados foram acantonados num redil onde, em virtude da sua complacência com os fascistas, os seus direitos de cidadania foram amputados (em julgamento sumário – e sem contraditório)? É que até o neoliberalismo prescreveu, por decisão divina.

Ao início, alguns de nós, os mais otimistas, ou aqueles que ainda estavam sob efeitos lisérgicos, desdramatizaram a angústia que acabara de nascer. Na pior das hipóteses – pressentimos – seríamos autores de composições musicais inspiradas no longo e funesto passo fascista. Continuaríamos a exorcizar o fantasma do fascismo, mesmo sabendo que o fascismo tinha sido dado com o extinto. A antropologia do fascismo teria de ser preservada para memória futura. Seria a válvula de escape para a criação artística vindoura. Manter vivo o estigma do fascismo, para não haver quem no futuro reavive a sua chama.

Algum tempo depois, muitos de nós estávamos inconsoláveis. Não tínhamos verve. A desinspiração era gémea da abolição do fascismo. Secara a veia que habilitava o arrebatamento artístico. O diagnóstico era dilacerante: nem o mundo perfeito em que agora vivíamos conseguia ser a musa inspiradora. Não nos conseguíamos excitar – artisticamente falando – com o palco idílico que um cortejo de divindades nos ofereceu. Demos conta que só conseguíamos criar arte se estivéssemos acossados por vultos que esbracejassem a ameaça do fascismo – ou que, mediados pelos excessos de interpretação a que éramos dados, assim fossem por nós ajuizados. 

O fascismo fora atirado borda fora e a nossa inspiração também. Já não conseguíamos ser intérpretes das maleitas sociais; não havia oprimidos que tornávamos protagonistas de estrofes heroicas; para mal da nossa desinspiração, o mundo era um exemplo do bondade e felicidade geral, a pobreza tinha sido banida com a redistribuição das fortunas pornográficas, o capitalismo acompanhou o fascismo, entrando no seu estertor, já ninguém usurpava os demais com o vício da propriedade (outra aleivosia da burguesia decadente). 

Perdêramos o objeto da intervenção. Perdemos os sujeitos qualificados que motivam a intervenção artística. A nossa arte ficou órfã, ou nós ficámos órfãos da extinção do fascismo (um paradoxo). Nunca mais conseguiríamos  criar música, já não era imperativo intervir sobre as iniquidades que sobressaltavam o mundo e nos davam razão de existir (artisticamente falando), pois elas foram extintas com a erradicação do fascismo.

Tínhamos, afinal, saudades do fascismo – mas não digam a ninguém, para não nos levarem a mal.

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