28.2.24

Dá-me a tua maré

Beck, St. Vincent, Liars e Mutantes, “Never Tear Us Apart”, in https://www.youtube.com/watch?v=rJtP-kGBzIw

A partitura não precisa de pauta. Basta o luar, um lampejo de luz que emudece as trevas enquanto os medos estagiam à boca da noite. Os fantasmas fogem como podem, vão de mãos vazias, eles também mudos. As mentiras extintas (espera-se – a menos que seja outra, e maior, mentira) convocam as memórias do futuro. Os navios não se intimidam com a maré volumosa pressentida por um marégrafo itinerante.

As cores conspiraram uma greve, estão suspensas. O filme passa a preto e branco, como se tivéssemos perdido o paladar e a refeição opípara soubesse a nada. Não nos importamos. Arrancamos do magma os poemas bússola. Estão nas nossas mãos, como se perguntassem o que queremos fazer com eles. Não respondemos. Deixamos que sejam eles a responder por nós. A maior medida de liberdade é serem os poemas a falar por nós. Compõem uma maré invisível que segreda ao ouvido as profecias que depressa esquecemos. Não queremos saber da arquitetura do futuro; hoje, dormimos embalados pelas estrofes quiméricas.

A maré agitada desmotiva a prova do mar. Contemplamos as ondas que se emaranham umas nas outras, delas nascendo outras, promissoras, ondas que querem palco, trepando pelas ondas vizinhas. Se houvesse uma descrição do caos seria a tela do mar convulsivo que os olhos apreciam. O mar a pouca distância ecoa a morte (se alguém se aventurasse a ser seu escansão). Se houvesse mercê de o esquecer, depressa regressaríamos ao altar da nossa fragilidade. 

Os mares guardam incontáveis cadáveres. São as suas sepulturas e ao mesmo tempo seus tutores. Os cadáveres que nunca foram resgatados da prisão do mar não querem vingança. Não querem a companhia de outros marinheiros ou aventureiros. À profundidade em que estão, deixaram de ver a claridade. Se pudessem, diriam como se fosse uma advertência: no cozinhado dos paradoxos, a grandeza do mar esconde o pior dos infernos. Diriam: se puderem, escolham outro como o vosso inferno. Do mar, queiram apenas as marés que vos aplaudem. 

E nós, sem podermos estar temporadas ausentes do mar, contemplamo-lo com reverência. Não vamos ao marégrafo itinerante apalavrar juras sobre o mar. Apenas deixamos o olhar viajar no mar, voando sobre as ondas até que o sonho se funda com o horizonte. Esperamos que a maré nos levite até ao avesso do horizonte. Às viagens não dizemos que não, nós que não paramos de crescer à conta do inventário das geografias que não conhecemos.

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